Você tem um ano especial na tua vida? (Nelson
Rodrigues também gostava de misturar pessoas verbais. Só que ele pedia
desculpas, sacumé, anos 40, 50, 60, existia uma coisinha besta chamada pudor. Quanto
a eu, não peço porra nenhuma. Por que pediria? A quem? A você? Ora, se é você
que mas deve. (Este último período, que é que tu acha, melhor o encerrar cum
ponto de exclamação ou mil e uma reticências?) Rodrigues, I mean, Nelson – por que
todo mundo chama o Rodrigues pelo primeiro nome? Soa tão pernosticamente íntimo.
Na Orkut tinha uma comu sobre Machado de Assis que reunia algumas dezenas de
milhares de profes. Os profes chamavam Machado de Machadão. Jesus. Dai-me
forças pra tolerar a caphonice das gentes. E tem aqueles que se referem a
Graciliano como Graça. Pra esses, uma banana. Duvido que Graça aprovasse. Isso
foi uma piada? Detesto piadas involuntárias quando escrevo. Soa tão artificial.
Como aquelas insuportáveis séries americanas, mil graçolas encavaladas feito engavetamento
na descida da Anchieta segunda de manhã. Já fiz esta comparação outro dia,
gostei, taux repetindo. Eis o mais gostoso de escrever – fazer do vernáculo
gato e aquela merda que todo mundo e sua esposa quer fazer de tudo. Tem gente
que chama comparação de “metáfora”, vê se pode. Acham que tudo cabe dentro duma
metáfora. O rei das metáforas? Proust. O rei dos escritores. Não dá pra
comparar com o bardo por causa da distância instransponível entre as épocas. Que
chique esse bardo, né? Outra mania imbecil dos “literatos”. “Denota” familiaridade com a alta cultura. Aprendi a
usar “denotar” quando li Saussure na pós-dolescência. Aquela porcariada de semiótica
(para os americanos) ou semiologia (para os françoises), conotação, denotação,
signo, a Grande Tralha que os field brothers tentaram contrabandear pra poesia,
quebrando suas renomadas fuças no processo. Ferreira Gullar caiu fora assim que
sacaux o embuste. Por quê? Porque Gullar é poeta de verdade, very much the
reverse dos champs Elíseos, cafonérrimos e provincianíssimos em sua erudição
beletrista bacharelesca. Haroldo era migo de, logo quem, Umberto Eco co co co.
(Eu devia ganhar o Jabotei por essa.) Peraí, taux notando uns ecos do estrupício
José Simão nas minhas palavras ou será apenas calafrio? Daqui a pouco vou
tascar um rarará só pra, ugh, enfatizar. Já notou gente que usa coisas como “enfatizar”?
Eu já. O tempo todo. Pode parecer bom e saudável e producente mas no fim se
revela um tormento, creia. Aqui, exatamente, precisamente aqui entra a poesia,
a poesia de verdade. Nada mais encontradiço por aí que a poesia fajuta, cê
sabe. Quando carinha é leigo, até que desculpo. Sei como é, o sujeito tem
certas aspirações, alguém disse pra ele na infância que fazer arte é
distinto, a mulherada cai matando, se for deveras esforçado acaba encarando
um livro custeado do próprio bolso pra botar onde? Bidu. Na estante da sala de
frente pra que entra (é a enésima vez que falo isso, tá me irritando. Mas ocê há
de convir, esses bobocas que vendem o terno de tergal pra ver o nome enfatizado
na capa dum volume, jesus. Haverá atitude mais antiliterária? Guardadas aquelas
coisas que a gente guarda nessas horas, é mais ou menos como los hermanos
felder. Mamã, olha o filhote aqui dando uma de gostosão. Os talentosos têm
direito à vaidade, evidentemente. O duro são os pseudos clandestinos. Já pode
usar pseudo de novo? Uma época ficou tão batido, que pegava mal com todo mundo
e sua copeira carcando fumo nas pseudices da vida. Na Internet é facinho ver
quando nego descobre um termo novo. Taca-lhe pau, se achando. Me divertia pra
caráleo na orkut com os deslumbrados do dicionário. O que tinha de pseudo na
comu Literatura, jesus amado. Lembra daquele moleque de Diadema tarado por
botar uma de grande crítico? Carinha se amarrava em personas europeias, cheio
das alemãzices nos fakes que criava. Lembro dum, Dr.
Robert. Ring my friend I said you'd call Doctor Robert. A internet é legal
porque o sujeito pode se enganar defacto por uns tempos – tem até blogueiro que
acaba se dando ares de Balzac, mon dieu. Os mais frívolos, neuróticos, são os
primeiros a cair na cilada. A primeira vez que entrei na comu Literatura, lá
pelos idos de 2007, o tal diademense reinava por lá como Narizinho na história universal contada por dona Benta. Tascava dezenas de postagens diariamente, sobre tudo e todos que
tivessem algo a ver com literatura, pobrezito, provavelmente tá internado em
algum sanatório nas cercanias da retrorreferida via Anchieta. Onde andei
tomando uns choques na pré-dolescência. Que época, jesus christ. Deus vivia
querendo marcar uma entrevista mas me recusava recalcitrantemente. Ah, até que é
gostoso. Despirocar. O maior erro que cometi em toda minha vida foi tentar me
consertar. E deixar que papai e mamãe e companhia bela participassem da
tentativa. Foi aquele o ano especial da
minha vida. 1969. Turning point. Quero crer que a maioria é relativamente
destituída de turning points. Não deixa de ser uma vantagem – carinha nasce e
cresce imbecil e segue imbecil até morrer, sem maiores dilemas. Pois é, já
conheci sujeitos sem maiores dilemas. Sim, igual ao Esteves sem aquela coisa
que o Esteves não tinha. Também conheci um Esteves, digo, propriamente dito.
Portuga, no duro. Ex-milico, na década de 70 servira em Angola, estertores do
finado Império Portuga. Veio pro Brasil de mala e cuia e família depois da
Revolução dos Cravos. Espertalhão, entrou pro ramo de joias e pedras
preciosas. Era, lembro bem, cobra em matemática, todos os cálculos na ponta
daquela coisa que a gente não acha quando quer. Esteves era altamente moralista, enxergava pecado em tudo. Um dia
foi em casa, eu estava de macacão, Esteves ficou escandalizado, não era roupa
de homem. Botou o filho pra ajudar nos negócios, um dia mandou o moleque levar
uma encomenda prum freguês, o moçoilo caiu no sono durante o trajeto de ônibus,
perdeu o embrulho, era um anel de diamante de trocentos quilates. Esteves subiu
por aquela coisa que essa gente sobe em tais ocasiões. Arrasou com o garoto,
dispensou, jurou que nunca mais lhe daria outra chance. Foi então,
coincidentemente, que perdemos o contato, nunca mais vi o Esteves. Soube dele
alguns meses depois. Tinha fugido para o interior de São Paulo com a empregada.
Esteves, o moralista. Tudo que queria era uma bucetinha quente que à noite o
consolasse das injustiças da vida. Detonar a saúde mental do próprio filho era
secundário, obviamente. Não, Esteves nunca leu Gide. Quem lê Gide hoje em dia? 1969,
o ano que desci do céu e subi do inferno. Soa dramático, eh? Os tradutores de
Dosteaux que gostavam dessa interjeição. Simplesmente importavam em bruto
diretamente do francês. Jesus, preciso reler Dosteaux mas me sinto exangue. Tarefa
de toda uma vida. Você não pode simplesmente ler por ler, passar o olhar pelas
páginas, se enganando. Dosteaux abriu o curral pra enxurrada de
autoconhecimento humano inaugurada em meado do século 19, Freud incluso. Flaubert
me fascinou na juventude, claro, o dom “divino” da palavra aliado à argúcia psicológica
e ao refinamento ultrassofisticado, mas Dostoiévski me desceu do céu, me subiu
do inferno. E metade da população mundial envolvida. Vai por mim, você pode
brincar de joguinhos semânticos com Mario Quintana, pode se irmanar
teluricamente aos elementos e aos seres vivos e mortos com Manoel de Barros, chocar
o bom-mocismo calhorda dos classes-médias com Nelson Rodrigues, mas a alma
humana com sua inestimável beleza e sua infinita feiura está toda, ou quase, no
russo, o contraditório gênio oriental que fundou a literatura moderna do
Ocidente dente tete. Sei lá, tem hora me sinto tão linguarudo, quase pegajoso,
tenho medo de me candidatar a vereador. Perder o sono é um sofrimento. Tenho
certeza de que tudo se resume a uma noite bem-dormida. Ida. Dadá. E Bruxo é a mãe.