Sílvia, cara
Era esse o efeito pretendido?
Sílvia caríssima, em mim, o estrago que
causou, você deve ter alguma noção. Desenvolvemos expertise na matéria ambos, não
é mesmo? Embora você nunca tenha dado importância ao fato de ter me deixado enlouquecido
quando me trocou pelo gerente de banco. Por que um gerente de banco depois dum
poeta? Ainda não desisti de compreender. Nunca compreenderei, sei bem. Como sei
que vou morrer tentando.
Três retardando, retardando, retardando.
Faz umas cinco horas e dois dias que
venho aqui e sento e começo a digitar e desisto. Então decidi apelar. Botei a Ária da quarta corda. Recurso último. Nunca
compreenderei Bach (também) mas me reconforta um pouco saber que ele me
compreendeu. Que homem, esse João Sebastião. Antigamente gostava de chamá-lo de
deus, até me dar conta da impropriedade. A ideia de deus me é tão impossível. Quão
contraditório encontrar consolo num homem que consagrou a vida a seu deus. Eis
aí! Acho que encontrei a definição de Bach: um homem de magnanimidade divina. Em
cada nota do violino, em cada acorde do cravo ele me diz, me diz só a mim, que
a minha dor é a de todos nós e então devo ser humilde e me irmanar na corrente
dos sofredores e dos piedosos. Ah minha doce Sílvia, sou o mais religioso dos
ateus. Bach, o mais ateu dos religiosos. Joguete de palavras? Pra mim, sim. Pra
ele, não.
Disseram alguns, igualmente raríssimos, já
esquecidos pelos séculos, que Bach se elevou a tão impensável altura com sua música,
que adquiriu o dom celestial ao mesmo tempo em que perdia sua humanidade. É mistificação.
De mistificadores como fui um dia, enterrado até o nariz em minha ingenuidade e
em minha arrogância juvenil. Sim, já fui frívolo, Sílvia. Ainda sou. Não sei se
é possível deixar de ser. Pelo que sei de mim, pelo que sinto em mim, não. Hoje
estou absolutamente certo – a frivolidade é o maior dos nossos defeitos. O maior,
sem dúvida alguma. Sei não porque aprendi por meus próprios meios. Você sabe
que sou inepto. Mas porque João Sebastião mo ensinou.
Três você sabe, você sabe, você sabe.
Não, não significa que tenha aprendido. Estou
condenado a não aprender.
Sou teu Arthur Miller, você é minha
Marilyn. Até os dezesseis procurei minha Beatriz. Minha Lídia. Tive de me conformar com você. Miller nunca mais se recuperou depois que Marilyn o trocou
por... Por quem, mesmo? Um sujeito feito Arthur. Outro, feito eu. Que patético é
o macho ante a fêmea alfa. Andei olhando as fotos do casal no google. Arthur, cachorrinho
deslocado no mundo sob a todo-poderosa dona. Marilyn, olhar ora absorto, ora franca
mais controladamente arredio. O dramaturgo famoso, de talento, de escrita
proficiente, abanando o rabo para a dona meio impaciente, meio indiferente. Marilyn
soterrou o artista e intelectual sob sua animalidade acachapante. A seu lado, o
marido é apenas um palhacinho digno de pena. Ele existe para servi-la. Até abandonou
suas inquietudes de Grande Dramaturgo para posar de marido do Símbolo do Sexo
do século 20. Por que a loira platinada (jesus, me perdoa por escrever essa barbaridade) se
desviou de seu mundo de, ugh, glamour e poder para se juntar a um sujeito
ligado na alma humana, não no corpo paradigma do desejo do macho, é, para mim,
enigma. Marilyn e seu bibelô prestigioso da Broadway. As fotos me dão a impressão
de que Arthur não via a hora de voltar para casa e adorar, idolatrar a esposa
sexualmente. Ou tentar. Dentro das possibilidades. Eu, de minha humílima parte,
broxaria. Como aposto que Arthur broxou. Inúmeras. Sua mulher não era uma
mulher, mas um mito, ao qual ele saciava e que o saciava tão-somente em sonho. E
Marilyn por fim o destruiu. Arthur nunca mais se livrou da “ideia”. Morreu escrevendo
obsessivamente para, por, sobre ela.
Como eu com você, Sílvia.
De repente me deu essa minha revolta. Não
posso continuar. Sob pena de dizer o que sinto. E estava escutando Bee Gees, na
verdade.
Continuo amanhã. Espero não estar vivo.