Escrever, a vida dum escritor.
Pleonasmo? Tanto, talvez, quanto martelar
é a vida dum sapateiro. O sapateiro – pelo menos aquele que na rua da minha infância
abria seu ofício pontualmente às 5 da matina todo santo dia menos domingos. Às
vezes me dá essa agônica sensação de que tanto, talvez, quanto o sapateiro,
escrevo mecanicamente. Vou enfileirando palavras, frases, períodos neste blog tal
como seu João ia alinhando mocassins, sandálias e botinas na prateleira no
fundo do pequeno salão à espera do freguês em retorno.
Na comparação, o sapateiro ganha,
disparado. Nunca lhe ocorre, dia após dia, de manhã à noite, perguntar-se “por
que martelo, afinal?” Ele sabe por quê.
Você na certa já adivinhou o vem a seguir. Ao escritor, obviamente(?), não
cabe tamanha fortuna. O miserável martela, martela, martela, martela, no mais
das vezes sem a mínima ideia por quê. E de tanto martelar a esmo, atingindo ora o prego inuto o dedão, imprecando contra a própria imperícia com seu instrumento de
trabalho, a palavra, vira e mexe tentado a malhar o próprio cocuruto,
desanimado e frustrado que fica incontáveis vezes ao longo do dia e da noite por
sentir-se um robozinho martelador a golpear cegamente inutilmente sem saber se por si mesmo, por alguém ou por ninguém.
Mais que tudo, haverá na vizinhança alguém
atento a tão persistente batuque tuque tuque (mesmo que seja apenas para se
fazer a mesma pergunta que o escritor se faz)? tal como atentava na infância
este pobre escutador das marteladas de seu João em sua modestíssima e encardida
e atulhada sapataria exatamente diante de casa na rua da sua infância?
Eis uma das grandes razões que levam
um escritor a querer publicar. Aqui em muito pouco difere do sapateiro determinado
a concluir o serviço quanto antes para poder receber os míseros cobres de réis
que as leis do mercado sapatal lhe permitem cobrar por um par de solas renovado
e uma boa mão de graxa no vulcabrás já digno da aposentadoria.
Tenho quatro romances escritos. Cada um,
interminado. Em cada um, faltando pouco para o arremate. Rara, muito raramente me
lembro dum ou outro e recomeço a viajar pela trama e revisitar os personagens e
vou tentando me instigar a dar cabo da missão e um calafrio doloroso me
percorre o joelho esquerdo. Ora desanimo, inuto me vejo casmurro, acorçoado a
desafiar o mundo. (Puta merda, quantos desafios ofereci ao mundo até hoje.)
Não vou citar pela enésima o que Rilke
pensava sobre o “ato” de escrever. Quando esqueço por que, vou lá, abro o Carta a um jovem poeta, releio um ou
outro trecho, sinto a verve revigorar um tico. Dura alguns minutos, dependendo,
uma ou duas horas. Serve para estimular mas está fora. O que vale mesmo tem de
partir daqui do fundo. Senão é repeteco. Plágio dissimulado, involuntário.
Nos últimos tempos não tenho visto muito
sentido em escrever. Embora continue a. Já falei inúmeras do tema. Um dos mais
profundos medos do escritor é de repente se ver incapaz de produzir um reles
parágrafo e por essa razão vai retroalimentando suas técnicas literárias desse
pavor precisamente para quando chegar o dia da secura inspiracional. Todo escritor, grande ou cedo, tarde ou pequeno, acaba
se encontrando sob essa injunção . Então, se preciso for, é capaz
de escrever de olhos fechados. Comigo acontece com frequência. Deve ser,
imagino, perceptível aí do outro lado do balcão.
A tentação de parar é quase irresistível. Muitas vezes
liguei o computador decidido a deletar este blog todo e seus milhares de posts.
O que tem me salvado da catástrofe até agora é, por um fio de sensatez, imaginar
o day after. Sou deprimido, profundamente, e me aterroriza a possibilidade de o ser mais ainda.
Hoje à tarde estava mais ou menos na
situação descrita acima quando recebo um email. De uma das minhas leitoras.
Mais duma vez essa leitora me salvou de
cometer o seppuku literário. Nunca lhe contei, pois não acho que seja tema de
conversa entre um escritor e seu leitor. Há de manter-se distância pundonorosa entre um e outro, como tão sensatamente recomendava aquele “MANTENHA DISTÂNCIA”
que via nas traseiras dos caminhões quando viajávamos a Araraquara e mesmo além.
No email vespertino minha leitora menciona
uma experiência pessoal e termina com um surpreendente “obrigada por escrever”.
Me senti, claro, culpado. (Nós de educação católica temos de conviver com
esse nó indissolúvel que é nossa incapacidade de conviver legal com o sucesso.)
Nunca lhe agradeci por me ler, como seria “natural”. E não foi a primeira
vez. Já me agradecera exatamente da mesma forma antes, e não me dignei sequer a
responder. Sou fodão, com “dizem” a rapazida hoje em dia.
Reabri o blog numa página qualquer e
fiquei lá lambendo a cria. Me senti escritor novamente. Por minutos. Até me dar
conta, pela enésima, de que não me é facultado o milagre de consertar sapatos
que meus fregueses nunca submeteram a minhas mãos de artífice desmazelado.
Aí lembrei que um dia escrevera uma
espécie de agradecimento a essa minha leitora. Há, talvez, uns três, quinze
anos. Numa comunidade da orkut.
Foi assim:
“Não posso deixar escapar a oportunidade.
Os estertores da orkut vieram a calhar. Vou falar o que defacto penso da Suely.
Antes, porém, uma apresentação.
A Suely é uma dama.
Não, não lhe aplico o título algo vetusto
por sua idade. Não sei a idade da Suely. Não me interessa a idade da Suely. Não
sou como esses energúmenos que até ontem vinham a este antro forense fazer suas
necessidades fisiológicas como se não tivessem latrina em suas digníssimas
pocilgas residenciais.
Esses energúmenos que se orientam e
classificam pessoas pela idade.
Estava ainda há pouco olhando a parede
branca acima da tela do meu computador, matutando “Preciso escrever sobre a
Suely. Que é que posso escrever sobre a Suely?”
E ponderando fui.
Até tropicar numa lembrança, desabando do
estado letárgico em que entro quando me entrego a devaneios e bumba-meu-bio,
digo. Sinto os lábios e as bochechas conformados num sorrisinho satisfeito. (Adoro
meus sorrisinhos satisfeitos. São raríssimos. Só ocorrem (à revelia) quando a
rédea do meu superego se solta, o que acontece uma ou duas vezes ao dia.)
Sim, povo meu. Sorria com as frases que
meu cérebro ia tecendo em torno do que penso da Suely.
Que é que penso da Suely?
Bem, não tenho muito que pensar da Suely.
Pra começo de conversa, a Suely é um
fake. Um fake do bem.
I mean, até certo ponto.
O prenome, pelo menos, é genuíno. O
sobrenome não vem ao acaso. A Suely não precisa dar o currículo. É daquelas que
se ajustam suavemente aos provérbios e ditos, fazendo o bem sem olhar a quem.
A Suely me fisgou pela cordialidade ao
primeiro post.
Não sou um sujeito que se é cordial com
assim sem mais nem aquele complemento que conhecemos todos. Muito au contraire.
Espumo hostilidade ao primeiro contato e hostilidade atraio. Não, não foram os
fóruns que me ensinaram esta autolição. O sei desde os dois meses de idade.
Certa feita, nesta comu, uma loira
oxigenada curitibense que fazia suruba com seus cãezinhos e flanava por aqui só
pra encher meu saco me acusou de ser destituído de EMPATIA.
Assim, tu é bom mas não tem empatia.
Perguntei pra dona se estávamos
participando de concurso de miss. Adi que meu papo não era ser animador de
auditório. Que tava aqui pra falar de literatura. Não, esquece, não tava aqui
pra falar de literatura porra nenhuma. Tava aqui pra falar de mim. Que é a
única coisa que sei fazer nesta minha vida de narciso desenxabido.
Tão vendo como tudo aponta pro mesmo
ponto fulcral de inanição intelectual?
Os caras achavam que eu devia FAZER MÉDIA
puta que la merda!
É o que os blogueiros por aí fazem. I'll scratch your back, you'll scratch mine. O proverbial “quem não
tem sei lá o que faz nem imagino como”.
De repente, a Suely.
Foi assim.
Sabem essas pessoas que ocorrem uma,
duas, no máximo três vezes na tua vida?
Não troco a Suely pelo salário do Neymar.
E olha que o Neymar fatura CINCO MI POR MÊS.
Suely, perdoe a piadinha cretina – não resisti.
Precisava atacar o cretininho de alguma forma.
Vocês conhecem o Roberto Piva?
Claro que não.
Esta é uma comunidade literária em que os
membros dizem que Machado é uma merda.
Agora há pouco tava lendo o Roberto Piva
e uma hora lá o cara tasca o seguinte: (Sorry, citação literária à frente.)
“Nada mais
provinciano do que os clubinhos fechados da poesia brasileira, com seus
autores-burocratas tentando restaurar a Ordem & cagando Regras que o
futurismo, dadaísmo, surrealismo & modernismo já se encarregaram de
destruir. (...) A poesia é um salto no escuro como o amor. Por isso, MEUS
LEITORES PREFERIDOS são os heréticos de todas as escolas & os
transgressores de todas as leis morais & sociais.”
Vejam que MEUS LEITORES PREFERIDOS está
em letrona grande. Como dizem por aí, grifo meu.
Lembram daqueles tópicos bobocas em que
perguntavam como retardados “Qual é seu
escritor preferido?”?
Voltem à citação. Vejam lá, MEUS LEITORES
PREFERIDOS.
Piva tinha seus leitores preferidos.
Só um poeta que é defacto poeta pode se
dar o luxo de ter leitores preferidos. A nenhum membro semiereto da comu
literatura jamais ocorreria perguntar QUAL É SEU LEITOR PREFERIDO? pois os
membros semieretos da comu literatura ainda acham, sempre acharam, sempre
acharão que escrever é concurso de miss.
Qual Piva, também tenho leitores
preferidos.
Qual meus escritores preferidos, são
poucos, são raros.
Dos meus leitores preferidos, a Suely é
minha leitora preferida.”