Um dia Zezinho descobre uma coisa que
mudaria para sempre o rumo da sua vida: tudo que ficava sabendo imediatamente virava
realidade.
Zezinho tem prova do fenômeno quando a
mãe lhe conta que Toninho, filho da vizinha, foi atropelado aquela manhã.
Zezinho duvida.
Não pode ser — responde. Ainda ontem brinquei com ele de
pega-pega na rua! E hoje cedo vi ele indo pra escola.
— Pois
foi aí — a mãe diz. — Indo pra escola.
Zezinho, ainda incrédulo, sai e ruma até
a casa de Toninho. Aperta a campainha. A mãe de Toninho vem atender.
— O
Toninho taí?
— Não.
Ele foi atropelado. Hoje cedo. Snif!
Zezinho sente algo estranho. Quer dizer
que então era assim? Uma coisa acontece quando ele fica sabendo dela!
Pensa no que a professora ensina. A
invasão do Vietnã pelos Grandes Comedores de Hambúrguer com Batatinhas com
Muita Coca-Cola e Montanhas de Sorvete. Depois que ela disse que tinha
acontecido, ele foi ver no livro. Era verdade!
Agora precisa descobrir como fazer para
dessaber as coisas, fazer o já acontecido desacontecer. Vai ser um barato.
* * *
Certa manhã Nandinho descobriu que a melhor
coisa pra coçar o ouvido é a tampa duma bic.
* * *
Ledinha está sentada na cozinha olhando
seu pai comer.
De repente o pai para de comer e olha
para ela. E pergunta:
— Ledinha,
como está indo na escola?
Pega de surpresa, Ledinha não tem tempo
de pensar numa resposta e diz:
— Bem!
Então o “Bem!” começa a fazer eco nas
paredes da cozinha e das paredes da cozinha vai ecoando nas orelhas de Ledinha e
das orelhas de Ledinha vai fazendo eco nas paredes da cozinha...
Trinta anos depois.
Zé vai ao hospício visitar sua irmã Leda.
E em cada visita ela insiste que ainda está na cozinha escutando Bem! Bem! Bem!
Bem! Bem! Bem! Bem!
* * *
Zezinho está gripado. Assoa o nariz. Nota
algo estranho. Olha o lencinho. Vê uma substância gosmenta e amarela.
Percebe que faz parte do seu cérebro.
Com o tempo aprende que quanto mais assoa
o nariz, mais feliz fica.
* * *
Vivi está sentada no sofá da sala vendo
tevê. Passa a mão na cabeça, sente uma machadinha encravada em seu crânio. Dói muuuuuuuuuuuito,
muuuuuuuuuuito. Vai no espelho e olha. Não vê nada. A dor passa. Vivi volta
para a sala. A dor volta junto. Passa a mão na cabeça, sente a machadinha
enterrada no crânio. Vai no espelho, olha. Nada. Nem dor.
Vivi pega o espelho e leva pra sala e
bota o espelho diante do sofá.
* * *
Juninho vai no fundo do quintal brincar. No
fundo do quintal tem um barranco que dá pr’um morro. Juninho encontra uma
pedrinha incrustada no barranco. Puxa. O barranco desmorona. Depois, o morro vem
abaixo. Um enorme buraco se abre no lugar e engole tudo, a Terra, e o Sol, e a Via
Láctea. E o mundo e tudo mais acaba. Menos Juninho.
* * *
Claudinha aprendeu a rodopiar com apenas sete
meses de idade. Quando mamãe se afastava uns dois metros da fofa, estendendo os
braços e chamando, “Vem, nenê, vem com a mamãe!”, Claudinha dava um saltinho e
se punha em pé e, em vez de tentar caminhar até a mãe, como faria qualquer bebê
normal, começava a rodopiar. E assim ia rodopiando piando ando sem parar.
Rodopiava tanto, que chegava uma hora, bum! Se estatelava no chão.
Durante a primeira infância os tombos
após os rodopios não causavam machucados sérios o suficiente para deixar mamãe
e papai preocupados. Os bebês, como se sabe, têm boa flexibilidade e razoável
capacidade natural de assimilar pancadinhas sem maiores traumas.
Claudinha ia crescendo mas não aprendia a
andar. Só rodopiava. Quando queria ir dum lugar pra outro, começava a girar e
girando ia indo.
Quando fez 15 anos, todas suas
coleguinhas ganharam um baile de debutante de seus papais. Menos Claudinha. Pois
quando ela entrava, todos sentiam algo estranho. E enquanto ela ficasse
presente, a sensação ia ficando mais e mais e mais esquisita, até o insuportável.
E todo mundo ia embora.
Um dia, quando todos os alunos da escola
saíram correndo quando Claudinha entrou no pátio, seus pais resolveram levar a
garota ao médico.
Depois dos exames o doutor diagnosticou.
— Ela
nasceu em planeta errado.
— Como
assim, doutor?
— Pelo
que pude determinar, a menina deveria ter nascido num planeta parado.
— Parado? Parado como?
— Um
planeta que não gira. Infelizmente para ela, este nosso gira. Isso cria uma
incompatibilidade básica entre o eixo da menina e o da Terra.
— Mas
existe planeta que não gire, doutor?
— Que
eu saiba, não. Qualquer corpo celeste que há nos cosmos gira. Infelizmente pra
ela, repito.
A mãe olha pro pai, que olha pra mãe.
Ora, meu bem. E mesmo se existisse, como
é que íamos levar ela até lá?
* * *
O médico mal sai da sala do parto e faz
um gesto entusiasmado para o pai de Jorginho
— Porra,
tu nem imagina!
O pai de Jorginho se arrepia assanhado, a
imaginação comendo solta. Que é que entusiasmou tanto o doutor? Só pode ser
notícia boa.
O médico faz novo gesto, apontando na
direção do berçário, querendo dizer, “Vai ali! Vai ali no berçário, que a gente
se fala!”
O pai vai, quase não se aguentando de
comichão. Alguns segundos depois estão ambos no berçário diante do berço de Jorginho.
— O
senhor é felizardo! — O médico ergue as
duas mãos para indicar o recém-nascido. —
Nunca vi nada parecido!
— Que
é? Que é, doutor? — O pai mal se contém
de curiosidade.
— Dá
só uma olhada! — O médico se curva para
o berço e remove o lençol que cobre Jorginho.
— Que
tal?
O pai arregala os olhos.
— Minha
nossa!
— Foi
exatamente isso que eu disse assim que vi. —
O médico também estica as sobrancelhas para cima. — Só pode ser hereditário.
— Não
é, não – intervem a mãe, que também veio acudir abre a boca e abana a cabeça. — O do pai, pelo menos, é piquininho.
O pai baixa a cabeça, embaraçado.
— Que
eu saiba, todos os homens na família têm de médio pra pequeno.
— Quando
ele crescer, vai ter de mandar fazer camisinha tamanho especial — o médico ri.
— Camisinha,
não — corrige o pai, estufado de
orgulho. — Camisão. Haja látex!
Hehehe...
O pai vai por aí espalhando a notícia.
Mal vê a hora de o menino crescer e botar pra quebrar. Certamente vai virar
capa de revista gay. Vai aparecer no jornacional. Mulher só chovendo.
O tempo vai fazendo a única coisa que
sabe fazer, ou seja, passando, passando, e o, com perdão da palavra, falo do
garoto cada vez maior.
A mãe olha o fenômeno, preocupada. Onde
isso vai parar, meu deus?
O pai reza todo dia pra que seja mesmo o
maior do mundo. Entre no Guiness. Ele sofreu e sofre tanto com seu, com perdão
da palavrinha, falinho. Às vezes tem a impressão de que a mulher não fica
satisfeita. Pior: às vezes enxerga uns reflexos sonhadores nos olhos da patroa,
acha que ela está se imaginando nos braços de negões fortões, violentada por
enormes, com perdão do palavrão, falões rijos feito mastros, com bojudas
glandes arredondadas feito abóbadas de torres moscovitas e vermelhos qual
tomates envergonhados.
Tudo ia indo à novecentas e noventa e
nove maravilhas, não fosse por um senão: Jorginho não crescia. Ao contrário de
seu pistolão.
O menino ia ficando cada dia mais
esquisito. Quando chegou aos 40 cm de altura, o bigulim já era maior que ele. O
nanico ia ficando uma gracinha que nem ele só – ninguém sabia dizer se era um
menino c’um pinto ou um pinto c’um menino.
— Magina
quando ele chegar à adolescência e o piupiu começar a endurecer! – a mãe tapava
a boca com a mão, virando os olhos súplices para o céu.
* * *
O lobinho alado
Era uma alcateia. Um belo dia nasceu um
lobinho de asas. A alcateia, pra variar, não deu a mínima. Podiam nascer
lobinhos do jeito que fosse, contanto que não enchessem o saco. (O qual, afinal
de contas, já não era muito grande.)
O lobinho alado foi crescendo, crescendo,
mas também não dava muita bola para as coisas. Às vezes olhava aqueles
apêndices logo abaixo da nuca e estranhava, mas o estranhamento durava apenas
uns 2 segundos.
Nesses momentos de reflexão, que além de
durar apenas 2 segundos ocorriam somente uma vez por semana, o lobinho alado,
vendo que seus irmãozinhos e priminhos não tinham asas como ele, perguntava à
mamãe loba:
– Mãe, por que só eu tenho asas na alcateia?
– Ora, filhinho. Pra que se preocupar com
uma bobagem dessas? Afinal, é só um detalhe. E, como já lhe ensinei, um detalhe
é só um detalhe. Se não fosse detalhe, não seria detalhe e pronto!
Como nem sempre a resposta da mamãe loba
satisfizesse sua curiosidade, o lobinho alado, nessas vezes em que ainda ficava
curioso, ia até o papai lobo que estava uivando pra lua no alto dum rochedo e
perguntava:
– Pai, por que só eu tenho asas na alcateia?
Papai lobo calava o uivo e, contendo a
lupina raiva por ver-se interrompido em atividade tão visceralmente nata e
atávica, ensinava com o pouco de paciência que a natureza reservou aos lobos:
– Ora, meu filho. Sendo lobo, você antes
de tudo é um caçador. E como tal só lhe interessa caçar. As esquisitices da
existência não têm lá grande importância.
O lobinho alado então dava de ombros e se
afastava, contente por ter um pai tão sábio e entendido em dúvidas
existenciais.
Assim satisfeito, rumava para o lugar
onde todos os dias seus irmãozinhos e priminhos brincavam de caçar. Faziam
grande algazarra, mordendo-se os rabos, treinando rosnados e caretas, saltando
nos pescoços uns dos outros, enfim, aprendendo ludicamente as tarefas que
teriam de executar quando crescessem.
– Hoje eu sou o caçador, você, o
carneirinho! – bradava um, arreganhando os dentes que já eram formidavelmente
afiados.
– Nada disso! – respondia o outro, pondo
à mostra presas ainda mais ameaçadoras. – Já fui carneirinho ontem. Hoje é a
sua vez!
E então os dois se engalfinhavam num
arranca-rabo que não parecia ter nada de lúdico. Os demais, atraídos pela
farra, acorriam e logo todo o bando estava metido na zorra.
Todo o bando, menos o nosso lobinho
alado. Certo dia até deixaram que ele entrasse na brincadeira. Mas sua
participação não durou sequer 2 minutos.
– Ih, que chato, lobinho alado! – logo
exclamava um dos irmãozinhos e priminhos. – Essas suas asinhas só servem pra
atrapalhar.
Então o lobinho alado ia embora, pensando
no que fazer. Como fosse incapaz de encontrar outra coisa para fazer, logo
voltava. Sentava num cantinho que não atrapalhasse, arrumava as asinhas nas
costas e ficava apreciando a fuzarca. Às vezes ousava abrir o focinho e
perguntava:
– Olá, irmãozinhos e priminhos! Estou aqui.
Posso brincar também?
Mas perguntava tão timidamente, vozinha
tão fraquinha, que os outros não escutavam – ou fingiam não escutar –, deixando
o nosso lobinho alado no papel de mero espectador.
E assim a vida prosseguia naquela alcateia
– irmãozinhos e priminhos cada vez mais aptos para a caça, cada vez mais
ferozes, cada vez mais sanguinários, o nosso lobinho alado cada vez mais
pensativo, cada vez mais introspectivo, cada vez mais sozinho.
Então, outro belo dia, o lobinho alado
acordou cedo – pois sempre acordava cedo, atormentado pela dúvida atroz quanto
às asas que levava às costas –, saiu da toca, deu alguns bocejos de sono e,
como sempre fazia, pôs-se a caminho da floresta.
A mata cerrada passara a ser o único
lugar em que sentia-se relativamente reconfortado, pois ali estava longe dos
olhares curiosos que seus priminhos e irmãozinhos lhe endereçavam com
insistência cada vez maior. E não era apenas a insistência que o incomodava –
alguns o olhavam até com reprovação; outros, mesmo com hostilidade.
Na floresta vagou por horas e horas,
absorto no próprio infortúnio, ocasionalmente arrumando as asinhas, que de
pequeninas tinham-se convertido em amplas e frondosas asonas arrastando no
chão, chegando mesmo a prejudicar as atividades rotineiras do seu pobre dono.
Achava-se o nosso lobinho alado nessa
situação, quando, de repente... vruuuuuuuuum! Bateu um forte golpe de vento no
meio da floresta e o lobinho alado... não podia acreditar... Estava voando!
Acima das copas das árvores!
Ele fechou os olhos de medo, já prevendo
uma baita duma queda. Esperou, esperou, e nada. Reabriu os olhos. Continuava
pairando. Olhou para trás e viu que as asas tinham aberto e agora adejavam
lenta e majestosamente, mantendo-o no ar.
Ainda incrédulo, o lobinho alado mexeu ligeiramente
os ombros, experimentando. As asas se fecharam num movimento mais brusco,
elevando-o rapidamente alguns metros. Ele olhou para baixo e viu que estava
agora em pleno ar, bem acima das árvores, voando no mesmo nível que andorinhas,
falcões e outros habitantes voadores da floresta.
Extasiado, começou a mexer os ombros para
cima, para baixo, para os lados, e em poucos minutos já dominava a arte do voo.
Subiu até as nuvens, deu rasantes, subiu de novo. Subiu, subiu, de repente
percebeu que voava entre os urubus. Parou de mexer os ombros e começou a
planar.
– Que delícia! – exclamou na direção dos
urubus, que simplesmente assentiram com a cabeça, sem se atreverem a entabular
conversa.
O lobinho alado ficou assim, asas
imóveis, circunavegando. Foi descendo lentamente. Avistou logo abaixo de si uma
águia. Bateu ligeiramente as asas na direção dela. A águia, assim que percebeu
sua aproximação, emitiu um rouco grasnido de alerta, agitou as asas e
desapareceu rumo ao pico da montanha onde morava.
O lobinho alado deu ombros. Mas ao dar de
ombros, disparou alguns metros à frente, desavisadamente levado pelas próprias
asas.
– Ih! – exclamou, rindo para si mesmo. –
Agora preciso pensar antes mexer os ombros, senão vou acabar atropelando algum
pardal! Hehehe!
Assim, feliz da vida como jamais
estivera, leve como se tivesse literalmente tirado um peso dos ombros, o
lobinho alado brincou um tempão, rindo-se feito bobo alegre, berrando para os
pássaros, furando as nuvens, tirando aflitivas finas de rochedos, pregando
sustos em corujas encorujadas nos ninhos, mergulhando feito um louco até ganhar
tremenda velocidade e só desviar o rumo meio metro antes de se estatelar no
chão.
Quando a brincadeira começou a cansar,
ele teve uma ideia:
– Ah, preciso dar a nova aos meus
irmãozinhos e priminhos!
Dizendo isso, bateu as asas rumo ao lugar
onde seus irmãozinhos e priminhos brincavam todos os dias. Quando os avistou,
estufou o peito, retesou as asas e se atirou lá do alto feito um raio, passando
pouco acima das cabeças dos irmãozinhos e priminhos. Estes, entretidos que
estavam com a algazarra de sempre, pararam e, confusos, olharam para todos os
lados, procurando saber o que riscara o ar perto deles, zunindo.
– Aqui em cima! – berrou o nosso lobinho
alado, planando por sobre as cabeças dos demais.
Todos olharam para o alto.
– Oooooh! – exclamaram, pasmos uns,
boquiabertos outros.
– Que você está fazendo aí? – perguntou
um deles.
– Ora, não está vendo? Voando!
– Como fez isso? – quis saber outro.
– Ora, com as asas. Com que mais poderia
ser?
Passada a surpresa, os irmãozinhos e
priminhos puseram-se a ganir e uivar desvairadamente.
– Venha! – começaram a berrar para o
lobinho alado. – Venha brincar com a gente!
Entusiasmado com a calorosa acolhida, o
lobinho alado não pensou duas vezes. Agitou as asas e a seguir imobilizou-as,
deixando-se flutuar até o chão. Assim que pôs as patas no solo, exclamou:
– Finalmente, irmãozinhos e priminhos!
Finalmente vamos brincar juntos!
Nesse instante os irmãozinhos e priminhos
pularam sobre o lobinho alado e o trucidaram. A mãe do lobinho alado,
observando a cena de longe, vendo as penas das asas do filho que saíam do meio
do ajuntamento, erguiam-se no ar e esvoaçavam, meneou conformada a cabeça e
pensou: “Eu sabia que não ia dar certo!”
Moral da história: o autor informa que,
sendo um indivíduo em completa consonância com seu próprio tempo, resolveu
deixar esta história sem moral alguma. Sorry, queridos e safados leitorizinhos
sem asa. Fica pra próxima...