Da série "Novos contos para crianças", VII

Um dia Zezinho descobre uma coisa que mudaria para sempre o rumo da sua vida: tudo que ficava sabendo imediatamente virava realidade.
Zezinho tem prova do fenômeno quando a mãe lhe conta que Toninho, filho da vizinha, foi atropelado aquela manhã. Zezinho duvida.
Não pode ser —  responde. Ainda ontem brinquei com ele de pega-pega na rua! E hoje cedo vi ele indo pra escola.
—  Pois foi aí —  a mãe diz. —  Indo pra escola.
Zezinho, ainda incrédulo, sai e ruma até a casa de Toninho. Aperta a campainha. A mãe de Toninho vem atender.
—  O Toninho taí?
—  Não. Ele foi atropelado. Hoje cedo. Snif!
Zezinho sente algo estranho. Quer dizer que então era assim? Uma coisa acontece quando ele fica sabendo dela!
Pensa no que a professora ensina. A invasão do Vietnã pelos Grandes Comedores de Hambúrguer com Batatinhas com Muita Coca-Cola e Montanhas de Sorvete. Depois que ela disse que tinha acontecido, ele foi ver no livro. Era verdade!
Agora precisa descobrir como fazer para dessaber as coisas, fazer o já acontecido desacontecer. Vai ser um barato.


* * *

Certa manhã Nandinho descobriu que a melhor coisa pra coçar o ouvido é a tampa duma bic.


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Ledinha está sentada na cozinha olhando seu pai comer.
De repente o pai para de comer e olha para ela. E pergunta:
—  Ledinha, como está indo na escola?
Pega de surpresa, Ledinha não tem tempo de pensar numa resposta e diz:
—  Bem!
Então o “Bem!” começa a fazer eco nas paredes da cozinha e das paredes da cozinha vai ecoando nas orelhas de Ledinha e das orelhas de Ledinha vai fazendo eco nas paredes da cozinha...
Trinta anos depois.
Zé vai ao hospício visitar sua irmã Leda. E em cada visita ela insiste que ainda está na cozinha escutando Bem! Bem! Bem! Bem! Bem! Bem! Bem!


* * *

Zezinho está gripado. Assoa o nariz. Nota algo estranho. Olha o lencinho. Vê uma substância gosmenta e amarela.
Percebe que faz parte do seu cérebro.
Com o tempo aprende que quanto mais assoa o nariz, mais feliz fica.


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Vivi está sentada no sofá da sala vendo tevê. Passa a mão na cabeça, sente uma machadinha encravada em seu crânio. Dói muuuuuuuuuuuito, muuuuuuuuuuito. Vai no espelho e olha. Não vê nada. A dor passa. Vivi volta para a sala. A dor volta junto. Passa a mão na cabeça, sente a machadinha enterrada no crânio. Vai no espelho, olha. Nada. Nem dor.
Vivi pega o espelho e leva pra sala e bota o espelho diante do sofá.


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Juninho vai no fundo do quintal brincar. No fundo do quintal tem um barranco que dá pr’um morro. Juninho encontra uma pedrinha incrustada no barranco. Puxa. O barranco desmorona. Depois, o morro vem abaixo. Um enorme buraco se abre no lugar e engole tudo, a Terra, e o Sol, e a Via Láctea. E o mundo e tudo mais acaba. Menos Juninho.


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Claudinha aprendeu a rodopiar com apenas sete meses de idade. Quando mamãe se afastava uns dois metros da fofa, estendendo os braços e chamando, “Vem, nenê, vem com a mamãe!”, Claudinha dava um saltinho e se punha em pé e, em vez de tentar caminhar até a mãe, como faria qualquer bebê normal, começava a rodopiar. E assim ia rodopiando piando ando sem parar. Rodopiava tanto, que chegava uma hora, bum! Se estatelava no chão.
Durante a primeira infância os tombos após os rodopios não causavam machucados sérios o suficiente para deixar mamãe e papai preocupados. Os bebês, como se sabe, têm boa flexibilidade e razoável capacidade natural de assimilar pancadinhas sem maiores traumas.
Claudinha ia crescendo mas não aprendia a andar. Só rodopiava. Quando queria ir dum lugar pra outro, começava a girar e girando ia indo.
Quando fez 15 anos, todas suas coleguinhas ganharam um baile de debutante de seus papais. Menos Claudinha. Pois quando ela entrava, todos sentiam algo estranho. E enquanto ela ficasse presente, a sensação ia ficando mais e mais e mais esquisita, até o insuportável. E todo mundo ia embora.
Um dia, quando todos os alunos da escola saíram correndo quando Claudinha entrou no pátio, seus pais resolveram levar a garota ao médico.
Depois dos exames o doutor diagnosticou.
—  Ela nasceu em planeta errado.
—  Como assim, doutor?
—  Pelo que pude determinar, a menina deveria ter nascido num planeta parado.
—   Parado? Parado como?
—  Um planeta que não gira. Infelizmente para ela, este nosso gira. Isso cria uma incompatibilidade básica entre o eixo da menina e o da Terra.
—  Mas existe planeta que não gire, doutor?
—  Que eu saiba, não. Qualquer corpo celeste que há nos cosmos gira. Infelizmente pra ela, repito.
A mãe olha pro pai, que olha pra mãe.
Ora, meu bem. E mesmo se existisse, como é que íamos levar ela até lá?


* * *

O médico mal sai da sala do parto e faz um gesto entusiasmado para o pai de Jorginho
—  Porra, tu nem imagina!
O pai de Jorginho se arrepia assanhado, a imaginação comendo solta. Que é que entusiasmou tanto o doutor? Só pode ser notícia boa.
O médico faz novo gesto, apontando na direção do berçário, querendo dizer, “Vai ali! Vai ali no berçário, que a gente se fala!”
O pai vai, quase não se aguentando de comichão. Alguns segundos depois estão ambos no berçário diante do berço de Jorginho.
—  O senhor é felizardo! —  O médico ergue as duas mãos para indicar o recém-nascido. —  Nunca vi nada parecido!
—  Que é? Que é, doutor? —  O pai mal se contém de curiosidade.
—  Dá só uma olhada! —  O médico se curva para o berço e remove o lençol que cobre Jorginho.
—  Que tal?
O pai arregala os olhos.
—  Minha nossa!
—  Foi exatamente isso que eu disse assim que vi. —  O médico também estica as sobrancelhas para cima. —  Só pode ser hereditário.
—  Não é, não – intervem a mãe, que também veio acudir abre a boca e abana a cabeça. —  O do pai, pelo menos, é piquininho.
O pai baixa a cabeça, embaraçado.
—  Que eu saiba, todos os homens na família têm de médio pra pequeno.
—  Quando ele crescer, vai ter de mandar fazer camisinha tamanho especial —  o médico ri.
—  Camisinha, não —  corrige o pai, estufado de orgulho. —  Camisão. Haja látex! Hehehe...

O pai vai por aí espalhando a notícia. Mal vê a hora de o menino crescer e botar pra quebrar. Certamente vai virar capa de revista gay. Vai aparecer no jornacional. Mulher só chovendo.
O tempo vai fazendo a única coisa que sabe fazer, ou seja, passando, passando, e o, com perdão da palavra, falo do garoto cada vez maior.
A mãe olha o fenômeno, preocupada. Onde isso vai parar, meu deus?
O pai reza todo dia pra que seja mesmo o maior do mundo. Entre no Guiness. Ele sofreu e sofre tanto com seu, com perdão da palavrinha, falinho. Às vezes tem a impressão de que a mulher não fica satisfeita. Pior: às vezes enxerga uns reflexos sonhadores nos olhos da patroa, acha que ela está se imaginando nos braços de negões fortões, violentada por enormes, com perdão do palavrão, falões rijos feito mastros, com bojudas glandes arredondadas feito abóbadas de torres moscovitas e vermelhos qual tomates envergonhados.
Tudo ia indo à novecentas e noventa e nove maravilhas, não fosse por um senão: Jorginho não crescia. Ao contrário de seu pistolão.
O menino ia ficando cada dia mais esquisito. Quando chegou aos 40 cm de altura, o bigulim já era maior que ele. O nanico ia ficando uma gracinha que nem ele só – ninguém sabia dizer se era um menino c’um pinto ou um pinto c’um menino.
—  Magina quando ele chegar à adolescência e o piupiu começar a endurecer! – a mãe tapava a boca com a mão, virando os olhos súplices para o céu.


* * *

O lobinho alado
  
Era uma alcateia. Um belo dia nasceu um lobinho de asas. A alcateia, pra variar, não deu a mínima. Podiam nascer lobinhos do jeito que fosse, contanto que não enchessem o saco. (O qual, afinal de contas, já não era muito grande.)
O lobinho alado foi crescendo, crescendo, mas também não dava muita bola para as coisas. Às vezes olhava aqueles apêndices logo abaixo da nuca e estranhava, mas o estranhamento durava apenas uns 2 segundos.
Nesses momentos de reflexão, que além de durar apenas 2 segundos ocorriam somente uma vez por semana, o lobinho alado, vendo que seus irmãozinhos e priminhos não tinham asas como ele, perguntava à mamãe loba:
– Mãe, por que só eu tenho asas na alcateia?
– Ora, filhinho. Pra que se preocupar com uma bobagem dessas? Afinal, é só um detalhe. E, como já lhe ensinei, um detalhe é só um detalhe. Se não fosse detalhe, não seria detalhe e pronto!
Como nem sempre a resposta da mamãe loba satisfizesse sua curiosidade, o lobinho alado, nessas vezes em que ainda ficava curioso, ia até o papai lobo que estava uivando pra lua no alto dum rochedo e perguntava:
– Pai, por que só eu tenho asas na alcateia?
Papai lobo calava o uivo e, contendo a lupina raiva por ver-se interrompido em atividade tão visceralmente nata e atávica, ensinava com o pouco de paciência que a natureza reservou aos lobos:
– Ora, meu filho. Sendo lobo, você antes de tudo é um caçador. E como tal só lhe interessa caçar. As esquisitices da existência não têm lá grande importância.
O lobinho alado então dava de ombros e se afastava, contente por ter um pai tão sábio e entendido em dúvidas existenciais.
Assim satisfeito, rumava para o lugar onde todos os dias seus irmãozinhos e priminhos brincavam de caçar. Faziam grande algazarra, mordendo-se os rabos, treinando rosnados e caretas, saltando nos pescoços uns dos outros, enfim, aprendendo ludicamente as tarefas que teriam de executar quando crescessem.
– Hoje eu sou o caçador, você, o carneirinho! – bradava um, arreganhando os dentes que já eram formidavelmente afiados.
– Nada disso! – respondia o outro, pondo à mostra presas ainda mais ameaçadoras. – Já fui carneirinho ontem. Hoje é a sua vez!
E então os dois se engalfinhavam num arranca-rabo que não parecia ter nada de lúdico. Os demais, atraídos pela farra, acorriam e logo todo o bando estava metido na zorra.
Todo o bando, menos o nosso lobinho alado. Certo dia até deixaram que ele entrasse na brincadeira. Mas sua participação não durou sequer 2 minutos.
– Ih, que chato, lobinho alado! – logo exclamava um dos irmãozinhos e priminhos. – Essas suas asinhas só servem pra atrapalhar.
Então o lobinho alado ia embora, pensando no que fazer. Como fosse incapaz de encontrar outra coisa para fazer, logo voltava. Sentava num cantinho que não atrapalhasse, arrumava as asinhas nas costas e ficava apreciando a fuzarca. Às vezes ousava abrir o focinho e perguntava:
– Olá, irmãozinhos e priminhos! Estou aqui. Posso brincar também?
Mas perguntava tão timidamente, vozinha tão fraquinha, que os outros não escutavam – ou fingiam não escutar –, deixando o nosso lobinho alado no papel de mero espectador.
E assim a vida prosseguia naquela alcateia – irmãozinhos e priminhos cada vez mais aptos para a caça, cada vez mais ferozes, cada vez mais sanguinários, o nosso lobinho alado cada vez mais pensativo, cada vez mais introspectivo, cada vez mais sozinho.
Então, outro belo dia, o lobinho alado acordou cedo – pois sempre acordava cedo, atormentado pela dúvida atroz quanto às asas que levava às costas –, saiu da toca, deu alguns bocejos de sono e, como sempre fazia, pôs-se a caminho da floresta.
A mata cerrada passara a ser o único lugar em que sentia-se relativamente reconfortado, pois ali estava longe dos olhares curiosos que seus priminhos e irmãozinhos lhe endereçavam com insistência cada vez maior. E não era apenas a insistência que o incomodava – alguns o olhavam até com reprovação; outros, mesmo com hostilidade.
Na floresta vagou por horas e horas, absorto no próprio infortúnio, ocasionalmente arrumando as asinhas, que de pequeninas tinham-se convertido em amplas e frondosas asonas arrastando no chão, chegando mesmo a prejudicar as atividades rotineiras do seu pobre dono.
Achava-se o nosso lobinho alado nessa situação, quando, de repente... vruuuuuuuuum! Bateu um forte golpe de vento no meio da floresta e o lobinho alado... não podia acreditar... Estava voando! Acima das copas das árvores!
Ele fechou os olhos de medo, já prevendo uma baita duma queda. Esperou, esperou, e nada. Reabriu os olhos. Continuava pairando. Olhou para trás e viu que as asas tinham aberto e agora adejavam lenta e majestosamente, mantendo-o no ar.
Ainda incrédulo, o lobinho alado mexeu ligeiramente os ombros, experimentando. As asas se fecharam num movimento mais brusco, elevando-o rapidamente alguns metros. Ele olhou para baixo e viu que estava agora em pleno ar, bem acima das árvores, voando no mesmo nível que andorinhas, falcões e outros habitantes voadores da floresta.
Extasiado, começou a mexer os ombros para cima, para baixo, para os lados, e em poucos minutos já dominava a arte do voo. Subiu até as nuvens, deu rasantes, subiu de novo. Subiu, subiu, de repente percebeu que voava entre os urubus. Parou de mexer os ombros e começou a planar.
– Que delícia! – exclamou na direção dos urubus, que simplesmente assentiram com a cabeça, sem se atreverem a entabular conversa.
O lobinho alado ficou assim, asas imóveis, circunavegando. Foi descendo lentamente. Avistou logo abaixo de si uma águia. Bateu ligeiramente as asas na direção dela. A águia, assim que percebeu sua aproximação, emitiu um rouco grasnido de alerta, agitou as asas e desapareceu rumo ao pico da montanha onde morava.
O lobinho alado deu ombros. Mas ao dar de ombros, disparou alguns metros à frente, desavisadamente levado pelas próprias asas.
– Ih! – exclamou, rindo para si mesmo. – Agora preciso pensar antes mexer os ombros, senão vou acabar atropelando algum pardal! Hehehe!
Assim, feliz da vida como jamais estivera, leve como se tivesse literalmente tirado um peso dos ombros, o lobinho alado brincou um tempão, rindo-se feito bobo alegre, berrando para os pássaros, furando as nuvens, tirando aflitivas finas de rochedos, pregando sustos em corujas encorujadas nos ninhos, mergulhando feito um louco até ganhar tremenda velocidade e só desviar o rumo meio metro antes de se estatelar no chão.
Quando a brincadeira começou a cansar, ele teve uma ideia:
– Ah, preciso dar a nova aos meus irmãozinhos e priminhos!
Dizendo isso, bateu as asas rumo ao lugar onde seus irmãozinhos e priminhos brincavam todos os dias. Quando os avistou, estufou o peito, retesou as asas e se atirou lá do alto feito um raio, passando pouco acima das cabeças dos irmãozinhos e priminhos. Estes, entretidos que estavam com a algazarra de sempre, pararam e, confusos, olharam para todos os lados, procurando saber o que riscara o ar perto deles, zunindo.
– Aqui em cima! – berrou o nosso lobinho alado, planando por sobre as cabeças dos demais.
Todos olharam para o alto.
– Oooooh! – exclamaram, pasmos uns, boquiabertos outros.
– Que você está fazendo aí? – perguntou um deles.
– Ora, não está vendo? Voando!
– Como fez isso? – quis saber outro.
– Ora, com as asas. Com que mais poderia ser?
Passada a surpresa, os irmãozinhos e priminhos puseram-se a ganir e uivar desvairadamente.
– Venha! – começaram a berrar para o lobinho alado. – Venha brincar com a gente!
Entusiasmado com a calorosa acolhida, o lobinho alado não pensou duas vezes. Agitou as asas e a seguir imobilizou-as, deixando-se flutuar até o chão. Assim que pôs as patas no solo, exclamou:
– Finalmente, irmãozinhos e priminhos! Finalmente vamos brincar juntos!
Nesse instante os irmãozinhos e priminhos pularam sobre o lobinho alado e o trucidaram. A mãe do lobinho alado, observando a cena de longe, vendo as penas das asas do filho que saíam do meio do ajuntamento, erguiam-se no ar e esvoaçavam, meneou conformada a cabeça e pensou: “Eu sabia que não ia dar certo!”
Moral da história: o autor informa que, sendo um indivíduo em completa consonância com seu próprio tempo, resolveu deixar esta história sem moral alguma. Sorry, queridos e safados leitorizinhos sem asa. Fica pra próxima...