Dez e doze da matina, outra jornada insípida, tarefas repetitivas qual a
dum chinês montando luzinhas de Natal, passando pano úmido nas mesinhas de
tampo de pinho envernizado, varrendo pedaços de queijo e atum e cebola e restos
de molhos de tomate, atendendo telefonemas de neandertais que não sabem dar
sequer boa-noite e têm preguiça de abrir a boca para pronunciar as palavras e
empregam um tom de voz áspero e insolente e autoritário como se eu fosse
capacho deles e não sabem direito o que querem e se atrapalham com o pedido e
se confundem e cancelam e não sabem se vão pagar em dinheiro ou com cartão de débito
ou de crédito e não sabem o endereço onde moram e não sabem o andar do prédio
onde moram e não sabem o número do apartamento e não sabem o número do telefone
e quando chego com a pizza o endereço não existe, porco dio.
Outra jornada insípida no aguardo daquele
telefonema que nunca vem...
Me dirijo à porta, abro, apanho a vassoura. Só então olho para o balcão
do caixa.
Levo um susto!
Meu primeiro pensamento é assalto! Tem um estranho atrás da
registradora.
— Você é o pizzaiolo? — quer saber.
— Sou. E o senhor...?
— O novo proprietário. Prazer, Ari. — Ele estende a mão direita na minha
direção.
Meu queixo cai, obviamente. Não sei se fecho a boca ou aperto a mão
estendida.
— Como assim? Desde quando? Cadê la signorina Gioacchina?
— Neste momento deve estar em...
— Ela vendeu a casa?
— Vendeu.
O chão parece bidu. Puxo uma cadeira, desabo sentado, a cadeira geme.
— Assim... — Minha voz morre na faringe. Tento de novo. — Assim tão de
repente?
— Já estávamos em negociação há um mês. Ela não lhe contou?
Cubro o rosto com as duas mãos. Não, não me contou. Como pôde?
— Não deixou nem um recado para mim?
— Infelizmente, não. Lamento.
— E onde o senhor entra nesta história? Gih nunca me disse que tinha família
ou conhecidos.
Ari dá a volta no balcão, faz um sorrisinho simpático, me dá um tapinha
animador no ombro.
— Não se preocupe. Vai ser melhor assim. A signorina Gioacchina andava
meio devagar ultimamente, a casa malcuidada, perdendo freguesia... Vamos dobrar
o faturamento em três meses, você vai ver.
Me levanto da cadeira, ainda segurando o cabo da vassoura. Que entrego
ao Ari. Que a apanha no reflexo, sem entender.
— Me desculpe, mas preciso caminhar. Não posso ficar aqui.
— Espere! Não tome nenhuma decisão precipitada. Em breve esquecerá a
signorina. Garanto!
Dou meia-volta, saio da pizzaria, paro na calçada, estudo a rua de ambos
os lados, não enxergo nada, não escuto som algum.
Estou em choque.
Minhas pernas se movem rua abaixo indiferentes ao meu comando. Parecem não
pertencer ao meu sistema nervoso simpático.
Estou caminhando, atravessando ruas, esbarrando em quem vem no sentido
oposto, dando encontrão em postes e árvores.
De repente minhas pernas estacam. Se voltam para a esquerda. É um
buteco. As pernas entram. Se detêm diante duma mesa no fundo do salão. Uma das
minhas mãos puxa uma cadeira, me sento.
Uma garota se aproxima.
— Oi! O que vai ser?
— Um steinhäger — minha voz pede.
Ela se afasta. Retorna em seguida. Põe a bebida na mesa. Se afasta.
Uma das minhas mãos apanha o copo, leva aos lábios, que sorvem o líquido
dum só jato.
A garota aparece outra vez.
— Outro?
Minha cabeça faz que sim.
Mesmo ritual.
De novo.
De novo.
Outra vez.
Então desperto do transe. Olho em volta. Estou num bar. Numa mesa num
canto obscuro. Atento para alguns detalhes. Já estive aqui algumas vezes. É o
buteco do Lacerda, famoso nas redondezas.
A garota se aproxima novamente.
— Mais um?
Olho para ela pela primeira vez. É bonita. A filha do Lacerda. Vive c’um
sujeito que mora mais ou menos um quarteirão rua acima. Dizem que o cara é meio
maluco. A menina tem vários namorados e ele não se importa. Maluco clínico, na
certa. Ela está em pé diante de mim, ao alcance dos meus braços. Por meio
segundo luto contra a compulsão de abraçá-la, trazer seu corpo para mim, sentá-la
entre minhas pernas.
Meu olhar se paralisa em seu rosto. Está sorrindo. O sorriso mais
sensual que já divisei nos lábios duma mulher. Sacudo a cabeça. Não posso me
apaixonar. Não agora. Não de novo.
— Sim, por favor.
Sorvo desesperançoso e infeliz o steinhäger gelado feito o coração das
mulheres bonitas. Passeio os olhos pelo salão. Está vazio, salvo por um sujeito
sentado quatro ou cinco mesas de mim. Quando estou para prosseguir em meu exame
do ambiente, algo me chama atenção naquele vulto. Tenho a impressão de que é
familiar. Estreito as pálpebras, perscrutando. sim, conheço.
É o querubim. Querubim Demóstenes.
Não posso reprimir uma reação de asco. Levo atabalhoado o copo aos
lábios, engulo o stein duma só golfada, torcendo para o álcool me ajudar a
digerir um áspero desagrado. Aspirava tão-somente a me devotar ao meu copinho
com o sacro néctar à base de trigo e de zimbro e submetido a um processo triplo
de destilação e que — sim, estava ciente — é apreciado apenas por uma minoria.
Eu e meu stein era tudo que almejava, neste dia e em todos os outros que já
vivi e ainda viverei. Queria ficar sozinho, cozinhando meus rancores, lamuriando
o abandono da Gih, matutando em estado de doce letargia — que podia raiar a
catatonia — sobre os caminhos alvissareiros e os descaminhos decepcionados que
este meu frágil coração vem percorrendo desde que me dei por gente.
Mecanicamente qual um robô aturdido, faço um gesto largo e premente na direção da
garota do balcão, suplicando outro. Um confronto com o Demóstenes era a última
coisa que eu podia querer nesta jornada sombria povoada dos meus assíduos e
mais fantasmagóricos ectoplasmas.
Alguém entra no buteco. É o Lacerda. Profissional como sempre, ele vem
em minha direção. Passa pelo querubim sem tomar conhecimento dele, como se não
o visse.
Olá! Seja bem-vindo. Olha meu copo. A temperatura do stein está no ponto
certo? Está sendo bem-atendido? Dá dois tapinhas em minhas costas. Bom revê-lo!
Ele se manda sem me dar chance de responder as perguntas, pelo que fico
grato. Estou sem ânimo para jogar conversa fora.
A menina no balcão, sagaz, se dá conta da minha aflição, se apressa para
me atender. Dou outra talagada, emendando c'um sinal de mais um. O que mais
aprecio no Lacerda e sua filha é que eles contêm o espanto ante a eventual voracidade
etílica do freguês, ao contrário de outros donos de bar e balconistas por aí
que repetem “Mais um?” com ar entre abobado e condenatório.
O impacto do álcool no sangue me enche de coragem e então ergo os olhos
para o miserável do querubim. É mister esclarecer que nem o Lacerda nem a
garota têm culpa no episódio. Não era possível bloquear a entrada do
desgraçado. Qual um réptil traiçoeiro, ele se esgueira por atalhos insuspeitos
dissimulados entre as caixas de cerveja e o lúgubre e acidentado corredor que
vai dar no banheiro imundo do buteco.
Vejo que o réptil também toma stein, acompanhado de chops e batatas
fritas — comprovadamente um autêntico jeca que não sabe calibrar as nuances do
verdadeiro paladar nem as sutilezas do epicurismo. (Ressalvando que as fritas
do Lacerda – ou melhor, de sua patroa, que toma conta da cozinha da casa –, também
não são de jogar fora.) Olho para ele e desvio o olhar, tentando fingir que não
notei sua infame presença. Tarde demais. Sou um desastre no que respeita a
disfarces. Isso deve estar claro a esta altura.
O Demóstenes ergue a tulipa em minha direção, oferecendo um brinde.
Cínico. Sempre que cruzo com ele pelas quebradas da vida imploro para me
deixar em paz. Sempre que cruza comigo ele faz de conta que somos amigos
inseparáveis. Esclareço que nossa aversão é mútua. Pelas escorregadias chispas
que lhe saltam das pupilas quando nos olhamos, provavelmente me detesta mais do
que eu a ele. O que nos diferencia é que trabalha como vendedor. E é dos bons.
E como todo bom vendedor, evita que sentimentos interpessoais tumultuem o
relacionamento profissional.
Quando ergue a tulipa à altura do rosto gordo e corado noto que o chops
não tem um milímetro de colarinho. Logro, porém, refrear um esgar de nojo,
malgrado meus pobres talentos de ator. E, sendo um sujeito que preza acima de
tudo a civilidade, retribuo o gesto. Foi a deixa que ele esperava para se
levantar, apanhando e acomodando habilmente o stein, a tulipa e a travessa de
fritas nas mãozorras, e vir para meu lado com sua patética e carnavalesca
ginga de querubim safado.
— Posso me sentar? — pergunta, sentando-se sem esperar minha resposta.
Um perfeito cafajeste.
Em que pese o ato consumado, faço que sim com a cabeça. Como sujeito
cultivado, não vou me desfazer das boas-maneiras por causa d'um primário qual o
Demóstenes.
— O chefe me contou a situação — vai dizendo, esticando os dedões para cima das fritas e pinçando um punhado delas. As batatas estavam recobertas por
uma camada de — sem exagero, posso garantir —, pelo menos meio centímetro de
sal. Pelo jeito, o salafrário não sofre de males nefríticos. Eu, se ingerisse
metade daquele areal de cloreto de sódio, certamente teria de passar por uma
hemodiálise meia hora depois.
Forjo minha máscara apalermada — no que sou craque, modéstia à parte — e
finjo que não escutei. Sabedor de que eu estava apenas representando — o que
deve estar mais que patente —, ele pigarreia, um pigarro seco qual granalha
lulliana, e repete num tom desagradavelmente ardido:
— O chefe me contou a situação.
— Nem precisava me dizer — dou de ombros. — Seu chefe espalha tudo.
Carinha mais fofoqueiro.
O Demóstenes se debruça ligeiramente para meu lado e cochicha, fazendo
ar de mistério:
— Quer dizer que você quer reconquistar a “mina”, hein? O chefe se
colocou à disposição. Você sabe, com ele não tem erro. Vem cá, há quanto tempo
trabalho com o cara? Nem preciso dizer, preciso? Pois é. Nunca falhou. Nem uma
vezinha. Vai ser bom assim na puta-que-pariu.
(Devo registrar que a partir deste exato instante uma vozinha longínqua
se põe a chamar insistente meu nome, rezando uma arenga pastosa de que consigo
distinguir apenas uma ou outra palavra como “cuidado!”, “não caia...”. Tem um
tom urgente e aflito. Devo ainda acrescentar que além de eternamente
apaixonado, sou também eternamente imprudente, às vezes até insensato, e por
isso não dou a mínima. Desligo o receptor interno que uso para captar sinais
de emergência. Às vezes, durante a longa conversa com o querubim, me dou conta
de que a vozinha não se cala um segundo sequer.)
Me sentindo ligeiramente mais intrépido sob as ondas de energia etílica,
solto o ar dos pulmões com estardalhaço. Pelos cantos dos olhos percebo que com
isso chamo a atenção do Lacerda e sua filha. Odeio a deselegância com que o
safado e seu chefe costumam se referir por “mina” às deusas por quem me
apaixono. Mas exigir civilidade seria perda de tempo e desperdício de
paciência. Gente dessa laia não tem escrúpulos, que dirá educação.
Fito bem os olhos dele e espremo os lábios, desanimado com as
perspectivas da negociação. Já entreguei tudo aos dois. Só me sobrou esta minha
inefável infelicidade de amargar mais um amor não correspondido.
Sorvo um gole do stein. Então lanço um olhar duro ao meu interlocutor e
protesto:
— Da última vez, paguei e ele não prestou o serviço prometido. Foi um
golpe sujo... — Mal profiro a frase idiota, sinto um aperto no estômago, me
dando subitamente conta de quão ingênuo sou por negociar com pilantras.
O Demóstenes apanha a tulipa e aspira ruidosamente todo o chops,
estalando espalhafatoso a linguona de serpente que mal lhe cabe dentro da boca.
Outra vez Lacerda e a garota olham em nossa direção, agora com cara de repulsa.
— É que houveram uns imprevistos...
— É a mãe! — Não me preocupo em conter a indignação, mesmo ciente dos
melindres do Demóstenes e de que provavelmente se trata apenas duma
provocação inócua. Não pretendo que se respeite a mesóclise, mas exijo um
mínimo de correção. Se fosse presidente, mandava encanar todos os infiéis que
detonam o vernáculo. Ser analfabeto não é, não pode ser desculpa para falar
errado. Conspicuamente errado, digo.
Embora meio alto, me alarmo com a minha própria insolência. Levanto receoso
os olhos para o querubim. Ele está sorrindo. Um sorriso debochado. E meneando
pausada e lentamente a cabeçorra, fingindo desaprovação. Se quisesse... Nem é
bom imaginar.
Apagando o sorriso da cara, ele abre bem as cinco garras roliças de uma
das patas, pousa a palma por sobre a travessa, pinça meia porção de fritas com
os dedões gordos e entucha tudo na bocarra escancarada, ao mesmo tempo em que
arregala os olhos desvairados para o meu lado, pupilas vermelhas em combustão.
Finjo a mais granítica serenidade, embora por dentro meus instintos de
sobrevivência recomendem veementemente que devia me agachar debaixo da mesa. Se
possível, bem longe dali. Ele sabe que tenho horror a demonstrações de
boçalidade. Por isso mesmo, nessas horas, faz questão de me provocar. Um
autêntico facínora, se me permitem uma opinião mais pessoal.
— Que imprevistos foram esses? — indago por fim, a voz espirrando do
fundo da garganta aos salpicos. — Sempre a mesma conversa. Se vocês não são
capazes de prever todos os riscos envolvidos na operação, incluindo
possibilidades as mais remotas e improváveis, então, me desculpe a franqueza,
não passam de incompetentes.
As pupilas dele crescem nos globos e se arroxeiam. E o rosto, se é que
meus sentidos já degenerados pelos sucessivos steins me permitem diagnosticar
com segurança, parece empalidecer. Só lembro de ter pensado algo como “É
agora...!”
O Demóstenes engole em seco, tentando digerir o insulto. Engole uma
segunda vez. E uma terceira. Então pigarreia de novo, sinalizando que tem algo
importante a falar. Aparentemente escolhe bem as palavras antes de externá-las.
“Lá vem bomba!” penso, procurando me precaver. Ele abre os lábios
grossos e obscenos e gira a cabeçorra para os lados do balcão.
— Lacerda, outra fritas! Agora, à portuguesa! — o vozeirão ribomba pelas
paredes do buteco. Ouço copos e garrafas tinir nas prateleiras.
Estou diante d'um pro, não posso deixar de reconhecer. Business acima de
tudo. O resto a gente se entende, se vocês toleram outra frase feita. Naquele
instante sinto um quê de admiração pelo cara. Fugaz. Mas admiração sim-senhor.
Não canso de me surpreender comigo mesmo.
— É que aquela dona era parada dura — ele ergue as mãos à altura do
peito num gesto de quem se defende duma acusação. Tem a bocarra ainda estufada
de batata, mesmo assim encaçapa entre os dedões a última meia dúzia de fritas e
soca dentro dos lábios escancarados. Então termina por empurrar a gororoba com
dois dedões e se põe a mastigar espalhafatosamente de boca aberta. Tenta falar,
mas não logra senão tartamudear.
— Pelo amor de deus, digo, ao seu chefe, termine de comer primeiro! —
Baixo a cabeça e desço o olhar para um ponto vago na mesa.
Quando reergo os olhos, vejo que ele está apenas se divertindo com meu
moralismo classe-média. Mesmo assim resolve acatar. Deglute pacientemente o
bolo de batata, vira um stein para ajudar na digestão, estala dois dedões na
direção do Lacerda, pedindo nova rodada, solta um ressonante arroto que paralisa
o vozerio do mundo por uns segundos e prossegue:
— Principalmente aquela dona... aquela última... como era mesmo? Van...?
Kan...? — Imensos perdigotos verde-amarelados de batata são espargidos para todos os lados. O verde se deve à gosma râncida que, imagino, equivale à nossa
saliva.
— Fran! — ajudo, numa tentativa de deter os fragmentos de batata
projetados na direção da minha cara e antes que ele faça mais uma de suas
gracinhas sem-graça.
— Isso! Mulherzinha mais pedante! Me diga, que foi que você viu naquela
pernóstica? Sem falar em todo aquele esprit-de-corps punk! Também
pudera. Qual era a proveniência da peça? USP, obviamente. Tudo que vem daquele
antro de debilóides, daquele... — De repente puxa fundo da garganta, produzindo
um ruído insuportavelmente asqueroso, estufa ambas as bochechas e dispara uma
tremenda cusparada gosmenta e variegadamente multicor no chão ao lado da mesa.
Tapo a boca com uma das mãos, tentando atenuar a ânsia de vômito, e olho
na direção do balcão. O Lacerda observa de soslaio, fingindo que não viu.
O Demóstenes limpa os lábios melecados com o dorso da mão e prossegue
imprecando: — ...daquele submundo de doentes, daqueles narcisinhos metidos a intelecas
e artistas, daqueles neuróticos incapazes de enxergar o mundo real...! Ah!
Minha vida virou um, com perdão da impropriedade, um inferno depois que você
passou a cair de paixão por universitárias!
Concordo com a cabeça, concedendo que está coberto de razão. E faço de
conta de que não registrei sua mania impertinente de enumerar xingamentos
contra o mundo acadêmico. Um maneirismo absolutamente irritante. E
desnecessário.
— Aquela foi parada mais que dura — completa.
— Todas são parada dura — sentencio já começando a me irritar. — Só me
apaixono por mulheres especiais. E, por gentileza, evite se referir às minhas musas
por dona e termos grosseiros do gênero.
Demóstenes abre um sorrisinho ligeiríssimo à la Gioconda. Provavelmente
de escárnio. Um escárnio escarnecedor de fino. Se diverte com meu coração mole,
minha vulnerabilidade, minha cabal ausência de instinto de autopreservação.
— Você há de convir. — Estica um braço e pousa a pata sobre a minha mão,
que, à espera do reabastecimento, eu estacionara ao lado do copinho vazio.
Podem pensar que estou exagerando — tudo bem, reconheço que passo dos limites,
às vezes —, mas a manopla do cara dá três ou quatro da minha, que é fina feito
a de dono de cartório. — Você há de convir, aquela dona era mais confusa que...
— ...cachorro em dia de mudança — me apresso a completar o chavão,
quebrando o barato dele.
As enormes pupilas se dilatam ao limite, refulgindo nas cores do
arco-íris. O Demóstenes tem um senso estético muito peculiar. Agora estou na
minha seara. Sei que ele não se atreveria a lançar mão de meios que não fossem
intelectuais. Ser inteligente às vezes vale a pena, rio por dentro.
— Bem, nisso até que você tem razão... — sacudo afirmativamente a
cabeça.
De fato, a mente da Fran funcionava — se é que tal termo seja apropriado
— de maneira mais errática que eletroencéfalograma de epiléptico. Nunca vi —
nem espero tornar a ver — mulher mais volúvel. Era cheia de filosofias de vida,
lemas e princípios. Os quais mudava a cada minuto. E quando digo mudava quero
dizer mudava radicalmente – ou da água para o vinho, se preferirem uma imagem
poética e original. Quando estávamos juntos passávamos horas bebericando um
chopinho ali mesmo naquela mesa. Começávamos trocando as amenidades que todos
conhecem (lembro duma ocasião em que chegamos a falar do tempo e dos índices de
lentidão do trânsito, das novas marcas de automóveis, do preço dos imóveis e
banalidades que tais) e então escolhíamos temas mais relevantes para ambas as
partes à medida que os chops eram trazidos no piloto-automático pelo Lacerda. Fran
estalava os lábios estufados de sensualidade, me lançava um olharzinho maroto
e, como se fora o segredo mais importante do mundo, “confessava” como a poesia
lhe salvara a vida.
— A redenção do ente humano está no resgate do espírito poético! —
proclamava em voz grave, grudando uns olhões palpitantes em cima dos meus, intimando
meu endosso.
Eu reprimia a gana de rir do solene pronunciamento e fazia que sim com a
cabeça, procurando não denunciar meu sentimento com um vácuo que certamente se
refletia em meu olhar. “Resgate”, ó Cristo! como detesto esse cliché-ônibus que
todo mundo e meu primo Valdo nos últimos tempos deu de tascar sem piedade nem dó
em qualquer contexto para se referir a qualquer coisa já passada.
— Acho absolutamente condenável a imposição estéril e artificial segundo
a qual o pensamento deve referir sua própria dinâmica através da criação de
conceitos...
Eu continuava assentindo. Já estávamos no sexto ou sétimo chops. Ela que
misturasse em sua linda cacholinha as sandices que lhe aprouvesse. O que me
interessa numa mulher é, um, beleza, dois, sensualidade, três, femininidade.
Cultura, se houver, vem de bônus. Erudição e intelectualidade, dispensáveis.
Eruditos não passam de computadores humanos com HD de trocentos gigas e centos
megabytes de memória ram. O conhecimento fica lá guardadinho. Só que
fragmentado em pedacinhos estanques. Não formam um todo. Você não pode apreciar
o panorama duma só vez. Isso quando consegue subir até o belvedere. Tem de
abrir e fuçar pasta por pasta. Fran, para meu azar, era eruditazinha. O pior no
metido a erudito, porém, não é pretender ser um google alexandrino ambulante —
é não se abster, nem um segundinho, de exibir o enciclopedismo vazio para todos que estejam ao redor. Fran jamais calava a boca. Na mesa do buteco me
limitava a assistir sua língua de víbora serpentear imorredoura e lasciva entre
os beiços maciços despejando toneladas de citações vãs. Tudo que eu queria era
que meus olhos continuassem embevecidos pela beleza do rostinho angelical,
prolongar o arrebatamento onírico o máximo possível.
— Segundo Bonnefoy...
— Quem? — o nome estranho me despertou da lassitude.
— Vai me dizer que nunca ouviu falar de Bonnefoy? — Sua voz adquiriu uma
tonalidade metálica. Uma sombra hostil atravessou os olhos de musa, provocando
um efeito extremamente perturbador.
— Infelizmente, não — me desculpei, erguendo a tulipa de chops e
tentando ocultar a cara.
— Whatever! — Em inglês o escárnio soava mais chocante. — Como dizia,
Bonnefoy afirmou que Auschwitz não impossibilitou a poesia, mas foi a falta de
poesia que possibilitou Auschwitz! — Arrastava exageradamente os ciciantes fonemas
germânicos, tentando uma pronúncia castiça.
Introduzi a borda da tulipa entre os lábios e deixei que o líquido
gelado e amargo descesse vagarosamente pelo esôfago, me estufando ainda mais o
estômago. “Bebo para me afogar”, costumo pensar nessas horas.
Depois de Primo Levi não tinha sentido algum discutir Auschwitz ou
qualquer outra coisa referente ao extermínio dos judeus nos campos de Adolf.
Quem leu Ist das ein Mensch? não precisa mais de explicações. O ser
humano e suas taras medonhas estão todos lá. O que torna o livrinho de Levi
básico é que ele passou pelas experiências que relata e, bom escritor, as
descreve com precisão e competência. Não há, não pode haver ensaio
bacharelístico que o supere.
Pensar em Auschwitz me traz de volta ao doloroso presente e a miríade de
assombrações que me perseguem desde sempre. A maioria, vejo, pasmo, a maioria
consegue ser feliz mesmo com a ideia de que campos de extermínio e quejandos
existiram um dia, existem ainda hoje, insuspeitos ou não, em regiões inóspitas
do planeta e, mesmo que um dia sejam extintos, sempre poderão existir no
futuro. O vulgo, fabricado aos trilhões na porca linha de montagem d'um deus
relapso e vagabundo, que a cada ano que passa se mostra mais e mais
insuficiente para suprir as necessidades espirituais da malta, o vulgo sai de
fábrica c'um mecanismo que parece desligar automaticamente ante os
curto-circuitos mortais que de décadas em décadas vêm provocar uma pane
terminal no cérebro da rapaziada. É o mesmo mecanismo que permite aos homens
ocos conviver cotidianamente com as horrendas favelas e a indigência
cancerígena que vão tomando conta do mundo e que todos fazem de conta que não
estão ali. Nunca me acostumei a andar pelas ruas vendo gente jogada nos cantos
das calçadas à espera da morte. Na minha noção infantil de ser humano, que,
lembro, presidia soberana minha cabecinha lírica, mulheres e crianças foram
feitos para viver c'um mínimo de dignidade. Quando há tempo e espaço, homens
idem. Criança, olhava em volta atônito, procurando ver nos rostos à minha volta
pelo menos um reflexo da repugnância do hediondo que me assoberbava. Nada. Na Índia
os preceitos religiosos de que devemos cuidar apenas do espírito, nos
preparando para uma suposta vida alhures, fez dos hindus capachos humanos que
não titubeiam em se esparramar pelas ruas enquanto cultivam o espírito.
Turistas ocidentais saem dos aeroportos e vão pisando alegremente em brâmanes e
faquires programados para viver e reviver eternamente sem dar trela para os
comandos da carne. Num país ocidentalizado qual o nosso, devia ser diferente. Fran
e outras mulheres que me atropelaram pela vida até que tentaram desviar minha
atenção, primeiro alegando que a beleza supera, ou é nossa obrigação fazer com
que supere, todos os horrores, depois, já perdendo a paciência e, eu podia ver
em seus suaves olhos de bruxa, se preparando mentalmente para montar em sua
vassourinha mágica de mulher bonita que sabe levar homens nas pontas dos dedos
e despachá-los sumariamente para alçar vôo em busca de outros reinos, depois
começou a me chamar de masoquista. A pergunta que essa gente de “bom-senso”
sempre me faz é “sofrer à toa para quê?” no estilo goze-e-relaxe, de
boçalidade infinitamente atroz, que hoje em dia se escuta por toda parte. Tenho
ganas de responder “Sofro porque a dor faz parte”. Neste mundinho irrespirável
de milhões de felicidades mágicas instantâneas, artificiais como suco de fruta
em pó, seria gastar saliva. Sem poder remediar a morte, a miséria e a
ignorância, os homens imaginaram que, para ser felizes, não devem pensar em
absoluto nelas. Pascal, citado por Bernhard em O alento. Sofro. Quando
mais não seja, por questão de princípio. Sou um carinha à moda antiga. Creio em
princípios. Princípios de verdade, não slogans arbitrários que tolinhas qual Fran
procuram seguir como se a promulgação duma lei significasse o próprio fim do
caos.
Antes que o Demóstenes desfaça o risinho zombeteiro, emendo:
— Aproveite e me diga se ela está pensando em mim neste instante.
— Quem? Fran?
— Essa já era. Ela!
— Nomezinho da peça?
— Ora! — rio. — Você não é o bonzão? Adivinhe.
O Demóstenes me fita sério.
— Podia me dar pelo menos uma dica. Não é nada fácil. Mesmo para um
gostosão como eu. Mas não me avexo nem pejo. Saindo...
Dizendo isso, relaxa os ombros, abandonando os braços lassos e
comprimindo fortemente as pálpebras, num esforço de concentração. A bocarra se
escancara mais uma vez, agora vazia, mas ainda deixando escorrer pelos cantos
um fiozinho de baba esverdeada e viscosa. De repente o vozeirão de barítono se
faz ouvir, parecendo trovejar de dentro d'um poço:
— Hmmm... vejo umas letrinhas lá no escuro fundo...
Me arrepio. O Demóstenes pode ser realmente assustador quando
quer.
— Está... está vindo...! Um nome... Não, parte. Parte d'um nome...
Não posso conter um sorriso folgado. Me recosto na cadeira, relaxo o
espinhaço. O espetáculo do Demóstenes exibindo seus recursos sobre-humanos,
prospectando as profundezas de seu tenebroso espírito para extrair a luz das
trevas como se fora água cristalina e pura do rochedo, o espetáculo do Demóstenes
é um espetáculo insuperável, só perdendo para o gozo propriamente dito. Estalo
os dedos na direção do Lacerda. Mais um! Mais um! Mais um até o fim. A paz queremos
com fervor, a guerra só nos causa dor, porém se a pátria armada...
— Não me desconcentre! — A chicotada sonora d'um trovão afugenta meu
delírio. — Exaltar o exército numa horas destas!
— Desculpe, dê — balbucio, me recompondo, atordoado com a reprimenda e
ao mesmo tempo me perguntando de onde raios veio aquela marcha que tanto
escutei na infância, ao mesmo tempo me admirando com os dotes telepáticos do
miserável.
— Ah! Agora sim — o Demóstenes abre um sorrisão satisfeito. — Tarebiz...
Não, nada a ver. Hmmm... sim! Tzarbei! Não, esse também não existe. Ah, agora
vai... Zeta Rib! It Zebra! Pronto! — Abre as pálpebras azuladas e olha o ar,
extasiado. — Ahhhh...!
— Pronto o quê? — zombo. — Zeta Rib ou It Zebra por acaso são nomes de
mulher? No máximo me evocam uma estrela de hollywood passando a tarde no
zoológico.
— Anagramas, sua besta. Deu para entender ou tenho de desenhar?
Torço acintosamente o nariz diante do lugarzão comum me esfregado na
cara assim com tamanho despudor. Ato contínuo, dou de ombros. Seria demais
esperar senso estético de “gente” como o Demóstenes.
— Descobriu ou não descobriu, afinal? — ralho. — Essa brincadeira está
me cansando.
— Cateleine! — ele solta um bafozinho fino e fétido. — E se pôs a recitar
para si mesmo num cochicho inaudível: — Cateleine... Cateleine... Cateleine...
Ai-ai, linda Cateleine... doce, suave, terna, leve, branda Cate...
Bato a mão espalmada no tampo da mesa com certa violência, produzindo um
estalo seco. O Demóstenes tem um sobressalto e estatela os olhos. Ato contínuo,
enrubesce, tonalidade entre brasa e carmim tingindo rapidamente a carona
rechonchuda e disforme.
— Mais respeito! — exijo. — Você não está autorizado a seduzi-la para fins pessoais. Muito menos a exibir sua lascívia de bode no cio.
Ele arqueia o pescoço. Fita o chão, submisso, quase servil, pedindo mudamente
perdão.
Por uns segundos sustento um olhar duro na direção dele, a custo
contendo a gana de me entregar a um sermão eivado de achincalhes. Sujeitinho
ordinário! Pela milésima vez caio em sua empulhação. Me distraio com os dotes
do miserável, me deixo iludir, e quando me vejo em suas mãos, me atraiçoa.
Espero a raiva passar. Logo a imagem enevoada dela volta a comandar meus
sentidos. Vou reassumindo meu estado natural de aturdimento, sonhando uma
salada de delícias carnais, sensoriais, sentimentais e estéticas. Quase
plenitude. Os grandes poetas deviam sentir essa salada epifânica a maior parte
do tempo. Agora é minha vez. Graças a ela.
— Ela está pensando em mim? — pergunto ávido, sentindo uma apreensão
repentina. Sofro dessa necessidade atroz de me conectar mentalmente com a minha
amada. Não sei, jamais saberei, ser solitário. Preciso grudar nossos
pensamentos até a mais cabal xifopagia. Amor, mesclemos os dois corpos e as
duas mentes e os dois corações e as duas almas. Sejamos unos! Percamos nossos
nomes num anagrama definitivo! Awe Blitz Irons! Atone Biz Swirl! Zaniest Rib
Low! Lazier Nibs Two! — Diga, ela está pensando em mim?
— Está! E em outras coisas também. Ela está pensando em... — A voz dele
modula para uma tonalidade mais prosaica. — Quer mesmo que eu conte?
Inclusive o que não lhe diz respeito?
— Melhor não. Prefiro não me intrometer no que não é da minha conta.
O vozeirão volta a troar:
— Espera! Os pensamentos agora estão todos voltados para você. Ela
está... está... está aguardando um... sinal...
— Aguardando como? Onde? Onde ela está? Na sala, no banheiro...
— Calma, rapaz! A coisa não funciona assim na velocidade da luz. — Ele
torna a cerrar as pálpebras. Franze a testa. — Ela está... hã... Sim! No
quarto.
— Como está vestida? — Minha sofreguidão se agudiza de segundo a
segundo. — Está usando um babydollzinho fofo? Ou apenas calcinha e sutiã? Ou nada
embaixo do lençol? Dá pra a sair uma foto?
O Demóstenes esfrangalha os olhos de pupilas arroxeadas. Vocifera:
— Por acaso tenho cara de impressora?
— Ai que suplício! — Apanho o copinho de stein que o Lacerda acaba de
deixar entre as minhas mãos e enxugo tudo num sorvo. — Não suporto mais essa
espera! Me diga pelo menos a roupa que está usando!
— Hã... Um... um vestidinho...
— Cor?
— A cor não posso dizer, você sabe.
— Onde ela está? Na janela, hipnotizada pelo luar? Sonhando com que há
além da noite? Sentindo as vibrações sísmicas do meu peito? Onde ela está?
— Deitadinha na cama. Olhando o teto. Espera... Olhando não. Conversando
com o teto. Cáspite! Essa eu nunca vi! — O Demóstenes libera uma formidável
gargalhada, que parece chacoalhar as prateleiras e as mesas do buteco.
Sendo um cafajeste pragmático e mecânico, naturalmente conversar com o
teto é, para ele, próprio de débeis mentais. Não, não estou afirmando que eu
também converse com o teto do meu quarto. Mas, sendo, de minha parte, avesso ao
pensamento-linha-de-montagem que assola e sempre assolou a humanidade, entendo
perfeitamente bem quem assim faz. Que mal há em bater um papo com o teto? Tanta
gente conversa com a parede. Só vejo problema quando é ele que conversa
com você.
— Que é que ela está falando?
— Bom, vou lhe franquear apenas um trecho. Você conhece as regras. Se
meu chefe me interpelar mais tarde, digo que foi apenas uma amostra grátis. Aí
vai: Amo a vida e vislumbro uma imensidão à frente. Apesar de algumas
tormentas vejo um farol tão iluminado que pode chegar a cegar por alguns
instantes, mas está lá norteando mansa e firmemente o devir.
— Deixe de conversa. — De repente tenho uma tentação avassaladora de
dormir. Refreio um bocejo. Por respeito ao Demóstenes. — A Cate não diria algo
tão solene assim. Não para o teto. E esse devir aí, me faz lembrar da
minha professora Deise e as aulas de gramática do terceiro ano, quando éramos
obrigados a ler, cruzes, Alencar. O tronco do ipê! Forrado de devires e mumunhas
outras. Ainda hoje sofro da síndrome da serra elétrica quando vejo um ipê na
rua. — Lanço o braço no ar num gesto de desdém. — Fala sério.
O Demóstenes me fita friamente. Está falando sério. Eu sabia. As regras
não toleram esse tipo de chiste. O Demóstenes, a — se é que posso pôr nesses
termos — encarnação do profissionalismo, preza as regras do seu ofício acima da
vida e da morte.
— Pelo menos me explique que sinal é esse que ela está aguardando? — Me
aflijo. — Que sinal ela quer?
Na verdade o que espero do Demóstenes é que me dê algo minimamente
concreto, uma evidência em que possa me fiar sem o perigo de quebrar a cara.
Não, não pensem que tenho medo de assumir riscos. Meu dia-a-dia é uma corda
bamba. Sofri algumas quedas ao longo dos anos. Mas nada suficientemente grave
para me aleijar ou definitivo a ponto de inscrutar em meu ego qual introjeção
neurótica. Certo, carrego alguns traumas, não posso negar. Mas essa também é
outra história cujo relato devo postegar para outra ocasião. No momento estou é interessado
em determinar como, se permitem mais uma impropriedade entre as tantas que já
cometi, como abordar a Cate. Nos poucos contatos que pudemos estabelecer, me
vi, confuso e aflito, às voltas c'uma mulher de opiniões e conceitos indetermináveis.
Em outras palavras, escorregadia. Um escorregadio de mulher inteligente. Vocês
sabem, provavelmente não há nada pior que uma mulher inteligente esperta.
Você olha e não sabe se ela vem vindo em tua direção na penumbra da aurora ou
se afastando no lusco-fusco do crepúsculo. Meio-tons tendem à escuridão, não à
claridade. Ao obscuro, não à clareza. E, para que meu céu pareça definitivamente
negro, ela me deixava mais e mais confuso a cada telefonema que trocávamos
afobados, eu atrapalhado de paixão, embaralhando as palavras, ela, sempre com
pressa, às voltas com as mil coisinhas de seu dia-a-dia de mulher com noção da
auto-importância. Imprimia em suas palavras um tom para mim até então
inusitado, expressava sentimentos em relação a mim de que até então eu não
suspeitara, constantemente me surpreendendo e me angustiando, não me permitindo
o bálsamo de uma certeza que fosse. Mais que tudo, parecia dizer “Você não me
pega!”, se esquivando, mostrando ora um dos seus lados, ora outro e outro e
outro, plantando falsas pistas, me induzindo ao erro, querendo me apanhar em
minha própria armadilha. Tudo que eu desejava lhe dizer era, minha Cate, minha
doce Cate, não sou homem de armadilhas, não sei usar armadilhas. Em todas as
vezes em que, incauto, me dispus a caçar, acabei caçado. Quantas vezes
me vi devorado em minha própria voracidade. Encurralado nos meus próprios
becos. Apanhado na minha própria teia. Ainda não sei se você quer que te apanhe.
Mas não posso esperar mais. Preciso atacar. É exatamente para te pegar que há
dias venho me emaranhando numa profusão frenética de aflições, medos,
esperanças e perplexidades, me torturando quase à morte para urdir uma trama
capaz de te envolver e te paralizar e te fazer minha. Tudo que preciso é um
sinalzinho, uma pista mesmo que remotamente verídica que me permita chegar até
você.
— Mais não posso dizer. — O vozeirão do Demóstenes me acorda outra vez. —
Não enquanto não fecharmos o negócio.
Tateio cegamente a mesa, procurando o copinho, que agarro com força
entre todos os dedos e a palma da mão e levo à boca e emborco. É
sempre assim. O desgraçado só me diz a metade. Um sádico, nada mais que um
sádico.
O Demóstenes prossegue:
— Mas... Olha, não posso garantir, você sabe muito bem. Ainda não foi
possível concluir até que ponto se trata d'uma mulher terna, bonita, sensual,
feminina e amável, segundo os termos do nosso contrato, termos que, como você
também sabe, não se aplicam necessariamente nessa ordem, e a potencialidade de
vir a se revelar uma cila devoradora de homens. Pelo que levantei até agora,
parece que há esperança...
— Dê, me deixa dar mais um telefonema, pelo amor de deus! Só unzinho. É
tudo que peço.
— Nem pensar — o famigerado denega. — E é para o teu próprio bem. Não se
esqueça do desastre da última vez, quando, mesmo contrafeito, atendi ao teu
pedido. Você, teimoso como sempre, ligou. A distinta, naturalmente, bateu o
telefone na tua cara. Escuta uma voz amiga. É para o teu próprio bem.
Outro calafrio. A dor daquela lembrança é aguda demais. Tem hora, o Demóstenes
age como meu verdadeiro querubim-da-guarda.
Então tenho outra ideia:
— Qual é o índice de lentidão na cidade neste momento? — arqueio o lombo
na direção dele, apreensivo com a possibilidade de o temido
engarrafamento-monstro alardeado por especialistas e autoridades ter finalmente
entupido toda a cidade.
O Demóstenes cerra novamente os olhos, agora com menos força.
Aparentemente, auscultar a situação das ruas e avenidas de sampa não é tão difícil
quanto entrar na cabecinha dourada da minha adorada Cate para fuçar seus
pensamentinhos desordenados e confusos.
— Bom, hoje é Sexta-Feira da Paixão, você sabe. Todo mundo puxando o
carro rumo ao interior. Exatamente o que você não está a fim de fazer agora...
A revelação me deixa lívido. Me esquecera do feriadão. A boiada de
imbecis motorizados mais uma vez a entulhar cada milímetro de asfalto,
impedindo que nós homens de boa vontade e embasbacados de amor cumpramos nossa
missão, a única missão que viemos cumprir neste purgatório chamado Terra. Lembro
as agruras anteriores, noites insones, ânsia de vômito incessante, porre
contínuo por manhãs angustiadas, tardes moribundas, noites tenebrosas,
madrugadas suicidas. O Demóstenes e seu chefe tinham me tirado praticamente
tudo: a saúde, a alegria de viver, o otimismo e outras coisinhas de que prefiro
não falar no momento. Resignado, indago:
— Quanto ele quer para dar um jeito no trânsito e em outros obstáculos
que por ventura se interponham em meu caminho até a... cidade dela?
— Você sabe quanto ele quer.
Sei, obviamente. Ainda mais sendo o único preço que posso pagar.
— Será que desta vez ele cumpre o prometido? — minha voz sai
entrecortada, meu peito arfa, o coraçãozinho doente de amor pulando mais que
gota d'água em frigideira pelando. A vozinha ardida e incômoda que ainda
tagarela algures dentro de mim se fez ouvir, dizendo que eu ia dançar mais uma
vez. Como de costume, não dou ouvidos à intrometida. A possibilidade de reconquistar
minha dançarina me deixa completamente obtuso. Mel! eis tudo que almejo, só que
persigo, tudo que pode me restituir a lucidez! Quero me lambuzar num oceano de
mel viscoso e açucarado cuja superfície seja plácida mas tenha as profundezas
atormentadas por correntes mortais que me arrebatem e me conduzam e me
transformem num delfim cheio de vigor a nadar insensato por todo o sempre
movido da mais pura alegria!
— Claro, claro! — o Demóstenes me dá um tapinha no ombro com os dedões emporcalhados
de gordura. — O chefe está mudado. Não sei o que deu nele, anda honrando tintim
por tintim os tratos com os fregueses... digo, clientes. Fechado, então? — Ergue
o braço diante do rosto e estreita os olhos na direção do rolex de ouro reluzindo
exageradamente grande e chamativo em seu pulso. — Fechando agora, amanhã, neste
mesmo horário, a doce Cate estará aqui no meu lugar, tomando um steinhäger com
você.
Será que ela curte stein? penso, penso e sinto uma ponta de angústia,
cogitando a hipótese de ela só tomar suco de fruta. A gente nunca sabe até onde
pode chegar a loucura que vai varrendo este pobre e irrecuperável mundo. Por
tudo que pude descobrir sobre ela até então, minha dançarina é combativa
cruzada antialcoolismo.
Franzo a testa e dou um último olhar para o teto. Embora agnóstico por
natureza, peço a proteção divina. Sim, entre meus milhões de defeitos, minha
inconsistência reluz qual rubi no monturo. Num fiozinho de voz, ciciante qual o
sussurro d'um riacho vertendo tímido e ao mesmo tempo sôfrego no breu da noite
lá fora, balbucio:
— Fechado. — E faço menção de me levantar da mesa.
— Not so fast! — O Demóstenes prende meu braço com a manopla de aço, me
retendo. Então passa um olhar severo e reprovador pelos meus sapatos, calças,
camiseta, subindo até o cabelo. Num tom escandalizado, pergunta: — Você vai assim?
Confuso, dobro o pescoço e olho minhas próprias roupas. Sim, o desleixo
está entre meus milhões de defeitos. Brado em voz suplicante e pusilânime:
— Vê aí o que você pode fazer, dê. Não tenho tempo de ir em casa me
trocar.
O Demóstenes revira os globos oculares num gesto de impaciência e bufa
alto e áspero, murmurando uns palavrões que não posso distinguir. Limpa
cuidadosamente as mãozonas em dezenas de guardanapos de papel. Então abre as
pernas gordas e musculosas e, c'um puxão seco e enérgico, me põe diante de si
como se eu fora um meninote. Qual meninote, me largo inerme, olhando para o
chão enquanto ele dá um trato nos meus sapatos e calças e descola, não sei de
onde, uma elegantérrima camisa de viscose branca e me passa um líquido no
cabelo — que torço com todas minhas forças para que não fosse sua própria baba
esverdeada — e me penteia.
— Vejamos a dentição como anda. — Enfia o dedão indicador entre meus
lábios e empurra meu maxilar para baixo. Vejo, pelo reflexo nas pupilas dele,
uma luzinha se acender instantaneamente dentro da minha boca. Legal! penso,
essa “luzinha intrínseca” faria muito sucesso entre os dentistas. — Hmmm, tá
necessitado d'uma boa limpeza nesses dentes de cavalo que não come milho.
Uau, “dentes de cavalo que não come milho”! Que parâmetros o sujeito usa
para diagnosticar esse tipo de condição bucal? Ele só podia estar — como tão
alvissareiramente dizem os jovens hoje em dia — me tirando.
Na sequência, uma superkolynos saracoteia dentro da minha boca, me
livrando da minha PLACA BACTERIANA.
— Essa aqui, só com plástica — Ele apalpa minha barriga e me avalia
enojado.
Que se há de fazer. Entre ser atleta e pizzaiolo frustrado, o destino me
deixou ficar com o segundo.
Antes de finalmente me voltar para porta do buteco e tomar meu rumo, o
Demóstenes, num gesto surpreendentemente afetuoso que deixa marejados meus
olhinhos assustadiços, me segura a nuca e, me fitando c'uma intensidade
perturbadora, aconselha:
— Desculpe o tom paternal... mas seja construtivo ao lidar com a linda.
— Como assim, construtivo? — Estou desorientado. O Demóstenes não cansa
de me espantar.
— Construtivo, ora! Por acaso vou ter de desenhar?
— Mas, dê! você me conhece, não sei falar desses assuntos que todo mundo
fala! Ai! Tudo é tão complicado para mim! Você, mais que todos, sabe, sabe que
ainda na infância me perdi aqui dentro de mim mesmo e nunca mais encontrei a
saída. Não consigo me identificar com as bobagens que as gentes vivem emitindo
pelos cotovelos dia e noite, dia e noite...
— Use a imaginação, asno! Afinal você é um pizzaiolo criativo ou what?
Sinto um campo magnético se instalando ao redor do meu cérebro. O pânico.
Quando se trata de proferir conversa fiada só para passar o tempo ou curtir a
presença de outra pessoa um vácuo toma conta do meu poder de articulação, perco
a capacidade da fala. Inúmeras vezes tive de bater em retirada ante olhares
inquiridores exigindo que eu me portasse assim ou assado ou dissesse o que
esperavam que dissesse.
— Não adianta. Sou incapaz.
— Não baixe os olhos assim, traste de homem. Honre a fama que criou! É
capaz, sim. Forje. Fantasie! Será que vou ter de te ensinar teu próprio métier?
Vamos lá. Exercício. Invente um assunto construtivo.
— Você quer dizer, já?
— Não, zé-mané! Ano que vem!
— Criando assim do nada...? Como se fosse...?
— Ou você engendra um tema edificante já, ou nosso negócio está
desfeito.
— Hannah Arendt...
— Que é que tem a Hannah Arendt?
— Ora, geralmente é um bom assunto entre pessoas preocupadas com o
destino da humanidade. Os chamados humanistas.
— Ah, sim. Você me pegou nessa. Claro. Hannah Arendt. Mas como é que
você vai impressionar a doce Cate falando de Hannah Arendt se você nunca leu Hannah
Arendt? Me explique.
— Bem... Li aquele... como era mesmo... A banalidade do mal.
— Leu metade, se bem me lembro.
— Não será suficiente para simular que sou dono do fã-clube da mulher?
Ah, também o li Homens em tempos sombrios em que ela fala de seu
relacionamento com o Heidegger .
— Outro.
— Música popular brasileira. Esse é kartoffel. Não há brasileiro ou
brasileira de boa vontade que não se anime em trocar abobrinha sobre emepebê.
Não tem erro.
— Puf! — o Demóstenes abrocha os lábios grossos e cospe metaforicamente.
— Que é que você sabe de música popular?
— Bom, manjo um tiquinho sobre aquele rapaz... Como é o nome mesmo?
Aquele filho do Sérgio Buarque de Hollanda...?
— Chico. Chico Buarque de Hollanda. Como é que vai falar do cara se nem
é capaz de lembrar o nome dele?
— Escrevo na palma da mão! Que é que você acha?
O Demóstenes tira uma esferográfica do bolso interno do paletó e ma
entrega.
Escrevo “xico” em letras pequeninas no meio da palma da mão esquerda.
— E se a Cate te perguntar que música dele você gosta mais?
— Sem lenço sem documento! — exclamo eufórico, lhe mandando um olhar
desafiador.
O Demóstenes cobre o rosto com as duas manoplas abertas, num gesto de
cansaço extremo. Depois d'uns segundos, deixa as mãos escorregarem lentamente e
vai abrindo as pálpebras. — Esquece. — Sacode a cabeçorra, desanimado. —
Deixemos os assuntos construtivos para outro dia. Faça a única coisa que sabe
fazer: fale de você mesmo.
— De bom grado. — Me entusiasmo. — Se a minha lindinha deixar, é o que
farei.
— Como assim, se ela deixar?
— Bem, você sacou o jeitão dela, não sacou? Posso estar enganado, mas
ela parece ser a personificação do narcisismo. Se é que me entende...
— Bah. — O Demóstenes ergue o antebraço e dobra espalhafatoso o pulso,
deixando a mão cair num gesto expressivo. (E dúbio, me evocando quase uma
desmunhecada. Por uns instantes me pergunto se, além de tudo, ele ainda etc.
Hoje em dia bidu.)
Ele prossegue:
— Isso você tira de letra. Afinal é o narciso mais empedernido que
conheço.
— Aí que está o problema. Dois...
— Chega de papo furado. Vai lá e bota para quebrar. Vou ficar aqui
torcendo.
Pela primeira vez em minha vidinha sem graça olho agradecido para o Demóstenes.
Estou ficando velho e, percebo neste instante, ele também. Partindo dele,
aquelas palavras de incentivo adquirem ainda maior significação. A sombra dum
navio-fantasma, porém, cruza célere a linha do meu horizonte. Será que ele está
caducando? Perdendo a mão? Pois, se for esse o caso, então me acho em sério
risco de quebrar a cara. Tudo que ele afirmou sobre a minha suave Cate podia
ser inexato. Pior: distorcido. Pior ainda: inventado. Não! Afasto prontamente o
pensamento ominoso. O chefe dele jamais consentiria. É o que digo e repito: com
essa turma é profissionalismo e eficiência acima de tudo.
Sim, o Demóstenes tem razão. Chega de papo furado. Já me estendi além da
conta nessa minha dolorosa preparação para meu primeiro confronto com a minha
iridiscente, a minha volátil, a minha até então vaporosa Cate envolta em vagas
nuvens e mistérios. Só então me dou conta de que, se não puser um fim a este
relato, mesmo que seja um fim arbitrário, provavelmente nunca mais pararia de
falar e especular e suspirar e devanear por ela. Um dia inteiro se passou desde
que iniciei este tour-de-force. Minha intenção inicial era alinhavar
dois ou três parágrafos que apenas sugerissem ao coração dela o vulcão que
ameaça irromper aqui dentro. Se não der um basta agora, acho que nunca mais
poderei parar. Sou, vocês sabem, um romântico mórbido.
Deixei de acreditar em religiões ainda criança. E em toda e qualquer
crença que leva o zé-ninguém a sustentar sua inabalável, sua infatigável
esperança de que o amanhã será melhor e outras tolices que tais. Minha
incredulidade, hoje praticamente intrínseca, inclui superstições, magias,
quebrantos, rezas, astrologia, pensamento positivo e quantas mais bobagens do
gênero possam habitar a mente dos primários por esse mundão afora. O zé-ninguém
foi feito não para desvendar a realidade e sim para prosseguir cego e surdo
rumo ao abatedouro no meio da manada, às vezes mugindo, outras, mirando as
estrelas na noite sem compreendê-las, desconfiando apenas longinquamente de que
seu fim será irremediavelmente trágico. Não me perguntem por que viemos aqui
desfilar nessa manada insana. Como disse alhures, sou agnóstico. Não me
interesso pelas razões nem por que razões existem ou deixam de existir. O
zé-ninguém é um ser pretensioso — almeja descobrir o que há por trás dos
mistérios da vida. Quanto a mim, não creio em mistérios. Não creio em nada.
Menti quando disse alhures que creio em princípios. Sim, a mentira é mais
um dos meus defeitos. A necessidade de crer em algo é patética. Mas, outra vez,
minto. Creio, sim. Creio que, pelo menos desta vez em minha existência de
frustrações e vexames, serei agraciado c'um grãozinho de sorte pelo mecanismo
que rege a minha sina. Ainda verei, estou certo, um sorriso se abrir sutilmente
nos lábios da minha Cate, ainda ouvirei de sua voz meiga uma ou duas palavras
de alento. Não, não é por isso apenas que meu coração pulsa. Mas me sentirei
abençoado se alcançar pelo menos essa dádiva.
Sexta-feira da paixão, sábado da paixão, domingo... todo dia para mim é
dia da paixão. Preciso, ó céus, preciso d'um cristo diário que morra por mim e
me salve de mim mesmo e do que quer que me persegue e atormenta. Cristo, se eu
morrer nesta empreitada, por favor, opere o milagre da minha ressurreição. Não
preciso renascer no domingo. Não tenho tanta pressa. Mas tenho pressa — mais,
urgência! — de amar. Amar é meu remédio. Minha saída. Cate, sei, sei com
certeza absoluta e cristalina como devem ter sido um dia as águas do Rio dos Meninos, Cate será minha heroína por uns tempos. Quanto exatamente, não ouso
imaginar. Doi pensar que, se houver um início, fatalmente haverá um fim. Não
posso pensar nisso agora. Quando se cansar de mim — e haverá de, disso também
tenho absoluta certeza, todos terminam por se cansar de mim cedo ou tarde, pois
sou um voraz desmedido e vorazes desmedidos terminam por se devorar a si mesmos
—, quando se cansar e me mandar plantar batatas ou sei lá que queira que eu
plante, retornarei ao meu estado de objeto inanimado, sem alma nem anima, sem esperança e sem vida que
tenho sido sempre. Por incrível que possa parecer, me acostumei. A perspectiva
de que alguém me ame e me remova, mesmo que a fórceps, da minha anomia natural,
faz de mim um ente intoleravelmente ávido. Ávido de afeto. De colo. De braços
acolhedores. De beijinhos frívolos e supérfluos e ao mesmo tempo canônicos. De
consolo. De paz. Passageira que seja, mas paz.
Aperto a mão do Demóstenes, me despedindo. Ele pisca uma das pálpebras roxas
à guisa de desejo de boa sorte.
Paro na porta do buteco, olho para o céu ansiando por enxergar as
estrelas. A caparaça da poluição é tudo que vejo.
Escuto alguém fazer psiu às minhas costas. Me volto. É o Demóstenes.
— Acabei de receber o sinal! — diz. E ri.
Meu coração dispara.
— Qual?
— Este: “Você me enxergou além... Focou em mim. Não entendo o porquê no
meio de milhões.”
— Não brinca! — exulto.
— Nunca brinco.
Então finalmente entrego minha alma, na esperança — vã? — de amanhã, a
esta hora, ter o rosto belo e bondoso diante de mim, me contando com sua voz aveludada
(esclareço que nunca escutei a voz dela mas sei que fadas, ninfas, rainhas e
outras excelsas foram dotadas de voz aveludada) me contando com sua voz
aveludada milhões de coisinhas de sua vida, essas coisinhas que toda mulher
apaixonada diz. Também sei que, nesta hora, não estarei prestando atenção, pois
nos meus sonhos delirantes nada sei fazer senão sonhar que sonho que sonho que
sonho.