Me amarro em rompantes de sinceridade. Pessoa
escreveu O guardador de rebanhos duma
só tacada, 40 minutos.
Não tenho medo dos sentimentos. Dos meus,
digo. Dos dos outros não tomo conhecimento. Me perguntam por que tanta
agressividade? Me perguntam que foi que me fizeram?
E se não me perguntam, deveriam.
Ser agressivo é apenas um dos meus incontáveis
estados. Me pergunto, por que não querem saber dos demais?
Tenho minhas razões por ser o que estou
e, claro, estar o que sou. E quando não as tenho, razões, é ainda mais gostoso.
Pessoas têm preconceito contra
sentimentos como agressividade e hostilidade. Rios infinitos que correm em mim
banham minhas costas para desaguar em minha cabeça. Meus problemas não são os
problemas dos outros, os problemas dos outros não são os meus. Lidar com meus sentimentos,
bons ou ruins, já me assoberba o suficiente. Não me surpreendo. Me surpreendo
apenas com os outros. Mas não é surpresa que me custe mexer um dedo. Sei, vocês
têm suas razões.
O jardim humano é pobre, não foi
fertilizado como deveria, ou poderia, pelas tempestades cósmicas deflagradas há
bilhões de anos. Em nosso modesto jardim florescem esplendores ao longo do dia e
horrores durante a noite. Será nossa consciência a média das nossas experiências?
O dia a dia, que dá em todo lugar, é a flor de perfume mais inebriante e
perigoso. Houve época em que sabia colher essa flor e trazê-la diligentemente
na lapela. Eles não fazem ideia do que estou falando, claro.
Longe estão os dias em que me contentava com
xingar o mundo todo. O auge imprecatório se deu após a leitura de Cléo e Daniel,
do psiquiatra Roberto Freire. Era tão simples e fácil me sujeitar à indignação
olímpica e esperar que a catarse exercesse sua função higiênica. Comecei a
adoecer quando parei de me indignar. Adoeci ainda mais ao me dar conta de que
fora um indignado ingênuo até então. Mais uma vez sob o encanto do perfume
venenoso das nossas flores, percebi, sob um clarão ofuscante, que minhas razões
não eram minhas. Parágrafo.
Que não havia saída. Fácil ou difícil. Comecei
a ficar a favor do contra. E, óbvia, clara, naturalmente, contra o a favor. Veja
como as flores do nosso jardim ainda teimavam em nascer, desabrochar, polinizar
a atmosfera com suas sementes do destino e por fim bater palmas e ulular aos
meus estertores.
Passado o desmaio, empaquei por anos a
fio. Você não vai acreditar mas não me lembro de absolutamente nada do que
houve nesse período, comigo, com o mundo, com as pessoas à minha volta. Se o
dr. Ito, médico da família, morto após contrair cirrose durante uma cirurgia,
ressuscitasse e me dissesse que estive morto ao seu lado por duas décadas, eu não
teria como contestar. Se a terceira guerra mundial tivesse eclodido e levado
quatro bilhões de bípedes para o inferno, não teria tomado conhecimento. Meu pai
morreu. E levou boa parte de mim. Minha mãe morreu. E levou o resto. Sobrei sem
ter restado.
Levei trezentos anos para aprender que não
sou o que penso ser e as palavras que minha boca articula e meus dedos digitam
têm pouco a ver comigo. Minha melhor definição talvez seja, ESTOU NO LUGAR
ERRADO. E todos também estão.
Me ensinaram – em casa, na escola, no
buteco bebericando uma cerveja – que a principal meta da raça humana é evitar
mal-entendidos. Me ensinaram, admito, mas não aprendi a lição. Nunca compreendi
a moral subjacente ao princípio do
mal-entendido. Um dos primeiros pensamentos claros e lúcidos que tive foi, por que não chegar dizendo o que penso?
Quer saber o que penso?
Não queremos não senhor. Nós mesmos não
pensamos. Nos limitamos a imitar. Vai embora com tuas estranhices. Nos deixa em
paz com este caminho que seguimos, pois é o único que nos deram e não queremos
saber se é o caminho errado.
Meu caminho é feito de perdas. Provavelmente
porque não acredito no princípio dos princípios. E em muitos fins de tardes,
esmorecendo, dilacerado entre seguir e voltar, permiti que alguns sujeitos que
se diziam meus amigos me acolhessem diante dum balcão de bar onde falávamos de
tudo e de nada, ocasionalmente até mesmo de literatura, trocando provocações inócuas
e boutades bajulatórias, sem que nos passasse pela ideia que éramos os sujeitos
errados no lugar errado.
Talvez tenha sido aí que cheguei a dizer
(a alguém) o que pensava ter a dizer.
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