Machado tem um problema?
O problema de Machado é que ele cospe mastigado
e o único trabalho do leitor é deglutir.
E expelir. Ou não.
Anos e anos lendo poesia, me viciei em
investigar. Poesia requer que você busque o oculto, desenvolva faro para o
inexplícito, exercite a desconfiança como a mais afiada das ferramentas de que
dispõe.
Passo seguinte, o que é explícito cheira
a intoleravelmente óbvio, perde a graça.
A vantagem dessa imposição é que você
acaba aguçando, queira ou não queira, coisinhas chatas como discernimento e
senso crítico. Como assim, queira ou não queira? Quem não haveria de querer
essas “coisas”? Eu, por exemplo. Tento não dar nem um passo além de mim mesmo. Tem
suas limitações, hehe. Há umas décadas lembro que estava tomando cerveja numa
mesa de bar cum sujeito qualquer que era quase tão cego quanto o Jorge Luís. Por
que não vai num oculista? perguntei. Porque a natureza me quis assim, ele
disse. É, como aqueles evangélicos que deixam um filho morrer porque a religião
proíbe transfusão. Taí uma boa descrição do que sou. Meramente parcial, bien sûr.
Em Do sentimento trágico da vida, Unamuno
diz que “(...) todo vital é antirracional, não apenas irracional, e todo
racional, antivital. E esta é a base do sentimento trágico da vida.” Fernando
Pessoa deve ter sido, até a presente data, a experiência mais radicalizada
oriunda da tentativa de um homem de encurralar a realidade, fora do que
costumamos chamar filosofia. Posso estar enganado mas creio que o filósofo
sempre parta daquilo que gostamos de chamar racional, pois filosofar exige método
e sem método não é possível atingir uma sistemização e uma estruturação, duas
outras pernas que sustentam o estudo do pensamento que busca a verdade. Minha impressão
da leitura de Pessoa é que ele foi se desdobrando naquelas personas literárias,
cujo número até hoje permanece indeterminado, para tentar cercar a realidade de
todos os ângulos que lhe pareciam possíveis. Para ele a inteligência estava
muito longe de caber dentro das rígidas fronteiras do intelecto. Seus heterônimos
foram criados à medida que o Pessoa ortônimo se visse, por alguma razão,
incapaz de estabelecer uma visão plena do universo e da vida. As personas não
resultaram antípodas, mas complementares, cada qual às voltas prioritariamente
com o sentir, o pensar, o viver, o fluir, o crer, o ser. (Não à toa, ele
frequentemente recorria à substantivação de infinitivos.) Lendo os principais, Caeiro,
Campos, Reis, Soares e o ortônimo, e mantendo o geral dentro do seu campo de
visão, você pode perceber que o irracional e o instinto formavam talvez o
grosso do angu convulso que constituiu sua alma. A beleza sublime de sua poesia
se acha exatamente na tradução desse espírito atormentado por impulsos antagônicos
para o racional através de palavras prisioneiras do intelecto. E a compulsão ao
conhecimento integral despertou bem cedo no peito de Fernandinho — aos seis
anos, ainda vivendo na África do Sul, já escrevia cartas que endereçava a si
mesmo. Hoje se conhecem dezenas de heterônimos. Tem até um, cruzes, astrólogo.
Hoje em dia Pessoa seria tachado de
multipolar e os campeões das Letras passariam seu caso aos psiquiatras. Que correriam
a diagnosticá-lo esquizofrênico e prognosticar sua internação no Juqueri.
O mastigado de Machado não se deve
confundir com o vomitado dado ao público por certos escritores por aí que se
orgulham de não ter aquelas coisas que geralmente se tem naquele lugar dentro
da boca. Naturalmente. Os ditos autores viscerais — a maioria, talvez — sempre fazem
grande força para que a confusão impere. Numa dessa neguinho pode se dar bem,
sacumé? O rebuliço começou com o modernismo e sua sanha de desmistificar a
forma. Admita-se que a empolação parnasiana não poderia persistir ante o
tumulto social comendo solto por ruas e praças e teria de ceder como qualquer
outra escola de pensamento e estilo artístico. A ascensão das massas à visibilidade
política — contra a vontade de elitistas como Nietzsche e Ortega y Gasset — fatalmente
traria o popular — e o popularesco — à condição de elemento literário. De
lambuja vieram o coloquial e o coloquialismo. Aqui entra o oportunismo dos
destituídos de talento. A vulgarização, no bom sentido, na literatura descambou
para a picaretice deslavada. Diarreia verbal e ajuntamento de palavrões passou
a ser considerado legítima expressão literária do povo e prova de que a arte não
é monopólio da nobiliarquia. Mais do que falar o que lhe der na telha, o autor
visceral faz questão de falar como lhe der na telha. O que importa é botar pra
fora, bicho. (A gíria aqui não é acidental, note-se.) Trabalhar a linguagem, perseguir
a excelência, se guiar por uma noção estética, isso tudo tá por fora, mermão.
A posição do visceral é oposta à minha. Para
o escritor boca-suja sem peias vaidoso da própria porralouquice a arrotar à
mesa do jantar de gala, cabras como Machado se preocupam demais com a posição
dos talheres e dos copos ao lado do prato. Ainda bem que temos um João Antonio para
esfregar na carinha melecada dos marcelos mirisolas da vida. Outro dia me
perguntaram se já tinha lido Pornopopeia,
dum tal de Reinaldo Moraes. Já ouvi falar, disse. E fui olhar no Google. Encontrei
um trecho no site d’O Globo. Lá pelas tantas deparo com “Quão estranhos e
surpreendentes são os caminhos da transcendência, diria Sidarta surfando no
nirvana, onde os peidos não fedem tanto”. Não sinto a boca sorrir mas sinto o
nariz torcer e corro de volta às obras completas de Machado em papel-bíblia, da
Aguilar, que ganhei antes de ontem, três volumes.
A poesia de Machado não é lá grande coisa
exatamente porque Machado tinha a mania de achar que seus leitores não
compreenderiam seus versos se antes não os mastigasse para eles. Não que uma
boa dentição, aliada a um estômago forte, possa resolver toda a parada poética,
claro.
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