Memórias do cárcere químico V

Uma doença grave é engraçada.
Afasta do doente aqueles que ele mais ama.
Sim — com perdão da pieguice —, quando ele mais precisa.
À medida que extravasa suas mais mórbidas manifestações, a doença parece alimentar o germe da indiferença naqueles que o doente grave mais ama. Sim, paradoxalmente. E, sim, o germe da indiferença, o sabiam todos, estava bem ali.
Às vezes, num fenômeno contrário — pois que se trata do mais autêntico dos fenômenos —, uma doença grave também reaproxima alguns daqueles que tinham se afastado irremediavelmente ao longo do tempo, pelos efeitos da preguiça, da omissão, do ressentimento.
Outras, simplesmente pode ter o dom de levar o doente a se deixar atrair por meros conhecidos, distantes vizinhos, desses com que a gente cruza pelas ruas e cospe um boa-tarde, um olá e já pica o passo e pica a mula torcendo que o compadre não esteja decidido a partilhar impressões sobre o clima.
Mesmo que ocorra, porém, a atração dos estranhos e seu inusitado, repentino peso na existência do doente grave — ou do que ainda restar dela — não consola quase nada a ausência dos que ele mais ama.
É tarde: não terá o doente grave tempo, e poder, de apostar na possibilidade duma inversão de papéis. Sabe que apenas comprovaria as mesmas faces dos dados.

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