Posso matar pela inspiração

Sou capaz de rememorar minhas aulas de gramática (em que ia catastroficamente mal, até me dar conta, anos depois, que minha gramática nada tinha a ver com a dos livros escolares e então passei a tirar cem em minhas provas diárias de redação).
Pela inspiração posso estancar de repente a fuzarca dos meus pensamentos e atentar hipnoticamente para os silvos dos bem-te-vis trocando desaforos canoros nos telhados da vizinhança enquanto pedestres e motoristas circulam lá em baixo inscientes da verdadeira vida que corre por sobre suas cabeças.
E pela inspiração sou bem capaz de pegar um abacate graúdo nas mãos e, apalpando-o para me certificar da sua madureza, cortá-lo precisamente ao meio e, com golpes suaves duma colher, raspar a tenra polpa creme-esverdeada sobre um prato e, enquanto a picoto com golpes resolutos duma faca sem dentes, me por a lembrar do prazer quase inefável com que papai se deliciava com seu abacate depois do almoço pontualmente às onze e meia de cada manhã, por sua vez quem sabe também deixando a memória brincar em torno dos prazeres de seu próprio pai, meu avô.
Me acometem incontáveis sobressaltos a cada instante ao longo do dia e em meu sono agitado e breve e espasmódico durante a noite e, se tivesse a capacidade de registrá-los por escrito, em frases e períodos impressionistas que fosse, poderia enfim apresentar a todos que esperaram de mim a disciplina e a decência a prova incontestável de que a forma e a fórmula do meu sucesso não estão inclusas nos manuais tão inócua e diligentemente elaborados pelas infernais usinas de processamento de robôs.
A vida é um incessante esconde-esconde e, quando terminar, terei encontrado o esconderijo que busquei incansavelmente na infância, a cabeça envolta e perdida numa fumaça invisível e letal, a consciência ciente de sua própria insuficiência e inutilidade, a certeza nunca explicitada de que nunca veria, por fim, o horizonte se mostrar límpido e miraculoso diante dos meus olhos de esperançoso leigo.
Sabia, sempre soube, desde os tempos mais profundos dos meus pesadelos e dos meus sonhos, que certos homens merecem os braços leitosos duma fada benévola ao fim de cada lida. Sabia, sempre soube, que tal dádiva existe de fato, sendo exclusiva de alguns raríssimos eleitos. Alguns destes até ganham o capricho duma lauta janta ao cair da noite consistindo duma suculenta lasanha e uma grande taça de vinho tinto excepcionalmente fresco. E nessa hora são eles capazes de reencontrar e exibir no rosto a expressão do menino que foram um dia.

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