A escuridão pode ser mais esclarecedora que a luz.
Meu eletricista
Certo, vou me agarrar a Soninha enquanto viver ou pelo tempo que
ela me quiser. Sílvia, difícil que me aceite de volta.
Mas nem por isso desisti de sonhar. Sim, tenho um projeto. E há em
meu projeto uma mulher.
A mulher do meu projeto haverá de ser bela, naturalmente. (Conheço
uma cacetada de caras que casam com bagres. Taí coisa que não entendo. Mulher
feia é algo que não existe. Qual deus, você só ouve falar. Quando dou com uma
na rua é como se cruzasse com um ectoplasma. Sendo agnóstico, faço de conta que
não vejo.) Com apurado bom-senso. Recatada. Elegante. (Se possível, capaz de
ostentar aplomb, um aplomb arraigado, nato, de herdeira aristocrática,
Catarina Deneuve para cima. Desde criança anseio por uma mulher com aplomb. O
que implico na Catarina é aquele andar de supermodel orangotangoso.)
Compreensiva. (O máximo possível. Se não for capaz de entender minha
idiossincrasias, que pelo menos finja. E bem. Poucas coisas na vida são mais
belas que uma boa atriz. A minha, quando não tiver orgasmo, seja simples ou
múltiplo, pelo menos espero que simule a contento.) Sincera. (Na medida do
possível.) Elegante, delicada, cordial, paciente. Compassiva. Intuitiva.
Gostosa — muito, a ponto de se tornar minha diva sexual e minha musa poética,
monopolizando minhas fantasias de modo que eu nunca sequer cogite traí-la. (Já
decidi: não vou trair minha mulher. Nem uma vez. Não importa quanto venha a
desejar outra.) Na cama, criativa. E também no sofá da sala, atrás da porta do
banheiro, no fundo do quintal, no banheiro do McDonalds. (Nunca frequento o
McDonalds nem qualquer outra pocilga que tal mas transaria no banheiro duma daquelas lanchonetes de contos de
fada de acrílico se um dia fosse lá com a minha esposa.) Gueixa imaginativa.
(Não necessariamente servil, mas ciente de seu dever para com o parceiro.)
(Digo, parceria no sentido mercadológico. Total. Seremos amantes safados na
cama, amigos mutuamente protetores no dia-a-dia, sócios diligentes nos
negócios, cúmplices, simplesmente cúmplices no amor.) Minha mulher modelar
possuirá todos esses atributos e outros em que pretendo pensar enquanto escrevo
e bebo e bebo e viajo. Acima de tudo, haverá de ser leal, partilhando comigo
todos seus pensamentos, receios, vontades e paixões. (Taras, não, pois não as
terá.) E, ia esquecendo, feminina. Saia será imprescindível. (Não há maior demonstração de
bom-gosto.) Um dedo acima do joelho, deixando à mostra as pernas sensualmente
robustas e possantes e ao mesmo tempo esguias e bem-plantadas qual as duma
égua, para deleite dos meus conhecidos. (Amigos ainda não os tenho, mas
tenciono incluí-los no meu projeto.) Não concebo mulher de calças compridas,
que são acintosas. O uso de calcinha será facultativo. Maquiagem, obrigatória.
Poderá cobrir os lábios carnudos com um batom vermelho-carmim, mas nos pomos
aplicará um pó-de-arroz suave, em tom de maçã frutificada no outono que não lhe
realce demais a sensualidade nem evoque possibilidades ambíguas. Virgindade,
dispenso — nada mais sacal que mulher virgem. (As virgens que conheci — falando
nisso, conheci um montão delas, como pode? — eram, noto hoje, todas doentes. E
singulares, mesmo antigamente, quando não se fornicava desbragadamente como
hoje.) Pode até ser e/ou ter sido um tantinho promíscua, bem familiarizada com
a genitalidade e os incontornáveis requisitos carnais de um homem. (Foram raras
as mulheres que souberam me agradar sexualmente. Quando não era impotente, eu
não dispensava uma massagem na próstata, pedindo à parceira que me introduzisse
no reto o dedo indicador ou um dos dildos da minha coleção.) O ideal é um misto
de pureza e perversidade com uma pitada de sadismo piedoso e algo de masoquismo
penitente. (Não se encontra em qualquer esquina, bem sei.) Faz tanto tempo que
estou abstêmio, que hoje só idealizo os detalhes, sem uma memória clara deles.
Quando Soninha disse que me queria, me ocorreu que não me recordava mais como
era ter uma mulher nos braços, as posições de que mais gostava, aquela expressão
maravilhosamente serena que elas fazem quando estão gostando, o semblante
divino de deusa concupiscente, as obscenidades verbais que mais as embalam em
seus diáfanos delírios de mulheres pragmáticas, essas cenas basilares na vida.
Sem esses detalhes meio que perco a capacidade de fantasiar e me vejo solitário
em meu teatrinho erótico-mental.
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