Tenho desprezo pela
crítica e nojo do elogio
Afonso, meu companheiro de
copo
Uns
três anos atrás Sílvia me pede para pegar o álbum, tivemos de vir à Aclimação.
Não
tinha nenhum fotógrafo mais perto?
–
É que estávamos na casa da Diane, então aproveitei, estava passando em frente,
me toquei que tinha enfiado o rolo do filme na bolsa fazia duas semanas, todo
dia ensaiando mas sempre sem tempo, faz isso por mim, benzinho.
Olho
a boquinha falante, imagino a língua laboriosa, acedo, Sílvia ganha fácil, me
orgulho da minha mulher, meus únicos bons momentos os passei com ela, o resto
posso — quero — esquecer. Custa acreditar que ela deu mole, a musa da
faculdade, nós cachorros famintos na caça virávamos bebês diante da deusa da
caça, os caras da turma vidrados, um fez dezenas de canções que vivia cantando
no ouvido dela entre aulas, ela ria, sem debochar, um riso magnânimo que nos
punha em curto-circuito, outro escrevia poemas, dia após dia punha um dentro
duma carta e enviava, um terceiro parou o carro na frente da casa dela e
descarregou vinte dúzias de rosas, um quarto prometia que não ia sobreviver sem
seu amor (há dois anos soube que esse se matou na Espanha, quem diria).
Meu
coração também tinha sucumbido, mas guardando cautela, não por esperteza e sim
porque eu não sabia demonstrar, aprendi a me esconder logo cedo, as poucas
vezes que tentei ser sincero quebrei a cara, não foi coisa à-toa, fui ficando
inseguro, sociofóbico, então o pessoal resolveu comemorar a formatura c’uma
excursão pro Rio, digo vão vocês, queria ficar, atividade grupal não, viagem
não, riso interior, esses caras estão delirando, a turma chiou, um disse que
então também não iria, outro empacou, depois outro e outro, ninguém ia,
formou-se a roda, vai na marra, exigiram, são só dois dias, não vai morrer,
coro se formou contra minha débil resistência, mal-estar insuportável, aceitei
para não ter de aturar o assédio. Não pode ser outra cidade? perguntei já
sabendo a ideia que eles não iam topar, não, está decidido, sentenciaram, lá
vamos todos pro inferno.
Fretaram
três ônibus, fim de novembro, calor africano, o suor encharcando a camiseta sob
a camisa e a cueca, cem por cento desconforto, algazarra, picardia dos caras,
risinhos e censuras fingidas das meninas, dez minutos alguém tocava violão,
começaram a cantar Chico, alguns tinham trazido baralho, alguém acendeu um
baseado, uma das meninas estendeu um pedaço de bolo embrulhado num celofane,
outra berrou querendo cerveja, outro coro, agora pro motorista parar num posto
da estrada, o cara do violão começou a cantar Caetano, depois Milton, Gil, de
repente o ônibus encostou e todos descemos e fomos para a lanchonete e pedimos
latas e latas, atacaram de Mamas & Pappas, minha cabeça só pensando em
bater no corrimão, outro gole na cerva, depois Beatles, Stones, Roberto,
tentativas de reação suplantadas pela boca que sugava outro gole, o motorista
apareceu e mandou que voltássemos pro ônibus, obedecemos cantando, mal sentamos
dá-lhe maluco beleza,
minha voz cantava mais alto que todas, alguém gritou que queria ir ao banheiro,
todos imitaram, o motorista fazia que não, um ameaçou mijar pela janela, outro,
ao nosso lado, lamuriava algo que eu não entendia bem, estava choramingando,
uma hora lá disse tô fudido, essa vida é uma merda, fiquei em pé e minha
garganta esgoelou se esforça
pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual, de repente o ônibus parou de
novo, descemos, corremos para descarregar bexigas prestes a vazar, alguém
comandou todos pro bar! lá fomos, camisa nova empapada de suor e cerveja, um
começou a puxar Chão de estrelas, impressionante que todos soubessem a
letra (GRANDE TRUNFO DO FRED É SABER A LETRA!), de repente sinto um apertão na
coxa, olho de lado, Sílvia está sorrindo, abro os lábios num sorriso de volta,
cantarolo eu vivia vestido,
ela completa de dourado,
retomo palhaço das, ela
emenda perdidas ilusões, ela me puxa pelo pescoço e lasca um beijaço na
minha boca, os guizos falsos de alegria à volta cessam instantaneamente, a
sonoridade do viveiro se apaga, a língua de Sílvia me conduz por um paraíso
bucal, num instante penso em cada um dos pretendentes, e outros, não vai ser
fácil encarar o embaraço mas logo o cara do violão vem de Rita Lee, rua augusta, Tom, Sílvia solta
meu pescoço para fazer o refrão vai
minha tristeza e diga a ela que sem ela não pode ser, as mãos se fecham, os
olhos grudam no rosto dela, não se movem enquanto voltamos pro ônibus, o cara
que ocupava o assento ao lado foi sentar discretamente em outro banco, Sílvia
sentou ao lado, agarrou minha mão, encostou os lábios na minha orelha e
sussurrou que me amava fazia anos, olhei as luzes passando na estrada, os
faróis e as lanternas dos carros, lembro com alguma clareza é que a palavra
excursão passou a ter um significado absolutamente inédito, ainda hoje quando a
leio sinto as pernas bambas, as rochas gigantescas da antiga amargura parecem
se mover como se não tivessem peso e rolam pelas verdejantes encostas desta
desconhecida montanha que depois vim a galgar brejeiro, leve como o ar, dois
dias docemente letárgicos, hiato esvoaçante na viagem da vida.
Incessante
algaravia até o destino que eu já tinha ultrapassado sem saber.
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