Deus meu! A língua inglesa é uma forma
de comunicação! A conversação não é apenas um fogo cruzado em que você manda
bala e leva bala! Em que você tem de se agachar para salvar sua vida e mirar
para matar! As palavras não são apenas balas e bombas. Não, são presentinhos
contendo significados!
Philip Roth
A solidão da ratazana
Scherzando
And far and high I see a
patch of sky. Puta que pariu, esse versinho
me faz chorar, sou um romântico clínico, não tenho cura.
É doença de que não se foge. Fugir para onde? Sei de quem fujo.
Sei quando fujo. Não sei para onde fugir.
Não posso fugir de mim mesmo. And far and high I see a patch of
sky me carimba no olho da mente o cenho sisudo de Philip Roth me recriminando
por ser tão escrachada, despuradorada, lulaticamente infantil.
Você sabe...
– Vê se cala essa fuckin' mouth. Estou cansado desse choramingo
interminável.
Desprendo o olhar da tela, giro o pescoço. Ninguém atrás de mim.
Faço força, giro mais. Ali está Philip Roth.
– Não diga “em pessoa”, you bastard. Em qualquer idioma que seja.
– Não senhor, não digo. Ainda sou dono, embora acabrunhado, dos
parcos neurônios sãos que me sobraram.
Philip exala aquela austeridade de quem guarda dentro do crânio o
cérebro mais poderoso de todos nós. De soslaio, tento estudar a expressão dele.
– Jamais me olhe de soslaio, hear me?
Meu olhar volta incontinenti para a tela. Uma onda de desconforto
me varre a barriga, o peito, a cabeça, tenho certeza de que minha testa está
porejando, que papel ridículo, mein gott.
Aqueles olhos que se estreitam rutilantes de inteligência...
– Posso usar um “e no entanto”? — pergunto sem olhar para ele.
– Desta vez. — Pela visão periférica percebo que ele cruza os
braços enquanto fala.
...e no entanto enevoados da angústia de saber que ele também não
tem para onde fugir...
– Philip, como é que você prosseguiria daqui? — A possibilidade de
despertar um deus do Olimpo não me intimida. Sou poltrão, poltrão refinado,
poltrão profissional, poltrão sem tirar nem pôr, sou um poltrão abjeto safado
mas não vou perder a oportunidade. Mesmo sabendo que pode ser a última.
Ele se limita a continuar perscrutando, ainda de braços cruzados.
Prossigo.
...acabou se encurralando em si mesmo num dos cantos deste mundo
sem cantos, os olhos tarados de dor e fome de apreender...
Ouço um farfalhar de roupa ao meu lado.
– Sai para lá. Eu continuo. — Com o punho fechado, que, noto, é
pintalgado de nódoas sépia, essas pintas que denunciam implacáveis a idade da
vítima mais do que qualquer cabelo branco ou pés-de-galinha no canto externo
dos olhos e que sempre me causam alguma repulsa de que estou vendo o que não
devia estar vendo, com o punho fechado, como que para evitar fazer um contato
mais íntimo comigo através da palma da mão, com o punho fechado ele empurra
imperativo meu ombro me obrigando a sair da cadeira. Por um segundo me passa
pela cabeça a ideia de resistir, sou homem ou ratazana, engulo em seco. É só
por um segundo.
– Pode sentar — ofereço, disfarçando a humilhação de abandonar meu
cockpit sagrado de piloto-faxineiro das minhas mazelas. Percebo que ele fica
desapontado. Esperava alguma reação. Sou uma ratazana.
– Não escrevo sentado, you know — ele faz um ar de profundo
desagrado. O mundo o estorva, a vida o estorva, eu o estorvo.
Eu sei. Há anos Philip escreve em pé. Mandou adaptar seu
computador e mesas na edícula de sua casa a que chega todos os dias às oito,
sem hora para sair.
– Posso segurar o teclado e o monitor, se quiser.
– Okay. Só não balance muito.
...escrutinando o que poucos ou nenhum de nós é capaz de enxergar.
Se quisesse, ele poderia simplesmente debochar de todos nós, um deboche
silencioso e amargo, um deboche olímpico a contragosto. You know, deboche é
arma de tolos.
Inda há pouco eu via uma saída, a deixava quietinha guardada num
dos meus porões imaginários, pensava que bastaria recorrer a ela quando
chegasse a hora de fugir.
A hora é agora.
Isso foi ainda há pouco, algumas horas, alguns anos, não lembro,
percebo com lucidez dolorosamente aguda que era só um truque, um dos muitos que
engendrei para me conduzir a mim mesmo a este beco sem saída.
THE END.
– Assim sem mais nem menos? — me espanto.
– Just like that.
Tendo recusado o papel de guardião das dores do holocausto, de
patrono da incessante diáspora de sua gente, ele tem nos olhos um brilho
particular. Não me furto às minhas responsabilidades.
– Não precisa dizer mais nada. — Ergo a palma da mão para ele,
pedindo calma e contemplação. — Vou acabar Operation
Shylock amanhã. Embora seja
seu livro mais enrolado, você sabe. Não sabe?
Ele não está mais aqui. Saiu tão despercebido quanto como entrou.
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