A cidade ideal 5

Naquela cidade há uma autoestrada em que todos, absolutamente todos os motoristas, quando passam, passam acima do limite de velocidade. Principalmente naquele trecho. E nesse dia, com essa moça, não é diferente.
Ela passa e... catapum! O radar acusa o excesso. (Pois nessa cidade é assim que os radares acusam o que quer que precise ser acusado.)
Como em todas as cidades normais do mundo, a moça, naturalmente, é parada pelo policial rodoviário. Profissional tanto de reputação ilibada, sem nenhuma recriminação nem advertência no valoroso prontuário de serviços, quanto de farda imaculada, nada de gordurinha deixada acidentalmente no colarinho por um grãozinho de arroz desgarrado na hora do almoço, nem gotinha de leite mais desastrada no café da manhã ou um perdigoto lançado a esmo pelo capitão durante a preleção matinal, tendo irreprimível formação militar que incluíra até mesmo um Curso de Não Esmorecimento Frente a Sofistas, o qual, aliás, completou com louvor, não se avexa nem titubeia:
– Prrrrrrrrrrrrrrrriiiiiiiiiiiiiii! – faz ele com seu apito, esforçando-se ao máximo para imitar o som dos apitos do resto do mundo.
A moça, que sempre foi obediente em casa e na escola, para o carro no acostamento. Olha no retrovisor e vê o policial se aproximando. Ela não apenas já pensou em fazer curso de filosofia pura por correspondência, mas também já ouviu falar de Granger e Quine, considerados os pais da lógica moderna. Além disso, nunca se abisma e quando tem de chutar, chuta de prima.
– Bom dia, madame! – o policial diz, polida e educadamente como soem dizer os policiais rodoviários. – A senhora ultrapassou o limite...
A moça é não só paleontóloga de profissão, mas também fã número um de Rex Stout e Raymond Chandler. E mais: já assistiu a todos ou a quase todos os filmes americanos de tribunal. Além disso, conviveu longamente com cabeleireiros gays em salões de beleza, chiques ou não. Assim, sendo craque em tiradas de letra e em esgrima verbal, ela replica sem hesitação:
– Umpf! – faz, apertando os lábios no que parece ser um rosnado germânico mas que não passa duma expressão de desagrado.
O policial só olha, esperando o desdobramento dos acontecimentos. A moça, vendo que ele não faz nada, completa:
– Ah, seu guarda! O banco fecha às quatro e eu preciso pagar uma duplicata ainda hoje. Sem falta!
– Sei, sei – O guarda meneia afirmativa e ironicamente a cabeça. – Quando não estão levando um sobrinho para o hospital ou um vizinho para pegar um avião, estão indo pagar uma duplicata! Isso quando não vão tirar o pai da forca! Diga uma coisa, madame: se sabe que o banco fecha às quatro, por que não saiu de casa com a antecedência necessária para chegar à agência sem afobação?
– Bem, seu guarda – A moça desaperta os lábios de raiva e tasca sem dó nem piedade: – Já que o senhor perguntou, vou responder. Não saí de casa com a antecedência necessária porque não estava em casa. Estava no escritório.
O guarda, usualmente rapaz comedido, está cada vez mais contrafeito, em vias de ficar enfezado, doido de vontade de entregar-se de corpo e alma às delícias da fúria. Estufa o peito e vocifera, ar ladino de quem não se deixa enganar facilmente:
– E posso saber por que não saiu do escritório com a antecedência necessária?
A moça, que não é boba nem nada e já esperando a pergunta, arregala os olhos e ataca com voz estridente:
– O senhor pode não acreditar, mas antes de sair para o banco eu tinha levado meu pai ao hospital.
O policial, calejado que é em lidar com inventivos motoristas infratores, tasca igualmente na lata:
– O que houve com o pobre velhote?
A moça, embora sabedora de que a vida é inesgotável fonte de clichês e surpresas, está acostumada a tudo, menos a um guarda de trânsito que chame seu pai de “pobre velhote”! Por isso, não se contém e sapeca:
– Teve uma crise hiperglicêmica!
– Ah, é? Quanto de glicose? – desafia o guarda triunfante, certo de ter deixado a moça num beco sem saída.
– Mais de trezentos! – ela sacode na pinta, olhando-o com ar maroto e zombeteiro.
– Bicarbonato sérico?
– Inferior a dez!
– Osmolalidade plasmática?
– Variável!
– PH arterial?
– Sete! Como o senhor sabe, a diabetes é uma doença grave...
– Poxa, de fato! O coitado estava na pindaíba...
– Acho que o senhor quer dizer “nas últimas” ou “dobrando o cabo da boa esperança”! – Quem exclama triunfante agora é ela, rindo de desdém. – Além do mais, duvido que o senhor saiba o que é pindaíba!
– Saborosa fruta da família das anonáceas, própria para sucos e ideal em batidas de vodka para a praia em dias de verão! – ele bate o martelo, superior. – Além disso, qualquer semiliterato sabe que é “o” diabetes, não “a” diabetes!
– Só usei o artigo feminino para não soar pedante! – ela coroa, tentando desarmar o policial.
– Chega de papagaiada! – Ele ergue as duas mãos à altura da cabeça num gesto de impaciência. – Voltemos ao que interessa. Excesso de velocidade...
– Ah! Não multa não! Guarda para depois!
– Com esse trocadilho, agora são duas multas! – ele exulta, vencedor.
– Mas onde é que estamos? – ela indaga.
O policial, sem saber se a pergunta foi apenas retórica ou se de fato ela não sabe onde está, responde:
– Na BR4. Acostamento. Perto daquela cidade – ele aponta com o braço para a frente.
Quando ele ergue o braço, um passarinho chilreia candidamente em algum lugar no alto. Ambos olham para cima e ouvem um ligeiro “puft”.
– Veja o que o senhor fez no meu para-brisas! – ela indigna-se, dedo indicador em riste pressionando o vidro pelo lado de dentro. – Titica de pardal!
– Que pardal, nada! Rouxinol. Era só o que faltava. Confundir...
– A culpa é toda sua! – ela acusa, quase enfiando o mesmo dedão indicador nas fuças do policial.
– Vejo que a senhora apela para qualquer coisa na tentativa de mudar de assunto. Mas não sou tolo. Ultrapassar o limite...
A moça, deixando de lado o cocô do passarinho, não pestaneja e devolve:
– Com o perdão da palavra, quem diz que não é tolo não passa dum tolo!
O guarda, já acostumado a lidar com motoristas imprudentes e sem graça, sempre em busca de pretextos para safar-se das penalidades pelas infrações que cometem, não deixa barato:
– Então me diga como devo chamar quem recorre à desculpa que a senhora usou, que, mais que esfarrapada, é rota, malcheirosa e desdentada, para ficarmos apenas nos adjetivos mais evidentes!
– Desculpe o mau jeito, seu guarda, mas o que o senhor acabou de dizer é uma baita duma inconsistência, digna de figurar hors concours no salão de honra do museu do asneirol, se houvesse um!
– Sem querer apelar para a ignorância nem descer para a baixaria, devo dizer que a senhora nada mais é que uma sirigaita !
Ela olha para ele estupefata. Vendo que acertara no alvo, ele mete bronca, escandindo as sílabas com os lábios retesados:
– Si! ‘Ri! Gai! Ta!
– Vê-se que o senhor é pródigo em pontos de exclamação!
– A senhora é que não conhece pontuação!
– Duvido que o senhor saiba o significado de “sirigaita”! Se soubesse, não perderia tão facilmente as estribeiras!
– Pois então me diga o que significa “estribeiras”?
A moça abandona definitivamente o ar blasé de superioridade, faz um gesto irritado com a cabeça, pisa fundo no acelerador e arranca, o carro guinchando os pneus.
O guarda... bem, o guarda empunha o talão de multas e põe-se sofregamente a garatujar, pois naquela cidade é isso que, entre outras coisas, fazem os guardas.