Naquela cidade há uma autoestrada em que todos,
absolutamente todos os motoristas, quando passam, passam acima do limite de
velocidade. Principalmente naquele trecho. E nesse dia, com essa moça, não é
diferente.
Ela passa e... catapum!
O radar acusa o excesso. (Pois nessa cidade é assim que os radares acusam o que
quer que precise ser acusado.)
Como em todas as cidades normais do mundo, a moça,
naturalmente, é parada pelo policial rodoviário. Profissional tanto de
reputação ilibada, sem nenhuma recriminação nem advertência no valoroso
prontuário de serviços, quanto de farda imaculada, nada de gordurinha deixada
acidentalmente no colarinho por um grãozinho de arroz desgarrado na hora do
almoço, nem gotinha de leite mais desastrada no café da manhã ou um perdigoto
lançado a esmo pelo capitão durante a preleção matinal, tendo irreprimível
formação militar que incluíra até mesmo um Curso de Não Esmorecimento Frente a
Sofistas, o qual, aliás, completou com louvor, não se avexa nem titubeia:
– Prrrrrrrrrrrrrrrriiiiiiiiiiiiiii! – faz ele com
seu apito, esforçando-se ao máximo para imitar o som dos apitos do resto do
mundo.
A moça, que sempre foi obediente em casa e na
escola, para o carro no acostamento. Olha no retrovisor e vê o policial se
aproximando. Ela não apenas já pensou em fazer curso de filosofia pura por
correspondência, mas também já ouviu falar de Granger e Quine, considerados os
pais da lógica moderna. Além disso, nunca se abisma e quando tem de chutar,
chuta de prima.
– Bom dia, madame! – o policial diz, polida e
educadamente como soem dizer os policiais rodoviários. – A senhora ultrapassou
o limite...
A moça é não só paleontóloga de profissão, mas
também fã número um de Rex Stout e Raymond Chandler. E mais: já assistiu a
todos ou a quase todos os filmes americanos de tribunal. Além disso, conviveu
longamente com cabeleireiros gays em salões de beleza, chiques ou não. Assim,
sendo craque em tiradas de letra e em esgrima verbal, ela replica sem
hesitação:
– Umpf! – faz, apertando os lábios no que parece ser
um rosnado germânico mas que não passa duma expressão de desagrado.
O policial só olha, esperando o desdobramento dos
acontecimentos. A moça, vendo que ele não faz nada, completa:
– Ah, seu guarda! O banco fecha às quatro e eu
preciso pagar uma duplicata ainda hoje. Sem falta!
– Sei, sei – O guarda meneia afirmativa e
ironicamente a cabeça. – Quando não estão levando um sobrinho para o hospital
ou um vizinho para pegar um avião, estão indo pagar uma duplicata! Isso quando
não vão tirar o pai da forca! Diga uma coisa, madame: se sabe que o banco fecha
às quatro, por que não saiu de casa com a antecedência necessária para chegar à
agência sem afobação?
– Bem, seu guarda – A moça desaperta os lábios de
raiva e tasca sem dó nem piedade: – Já que o senhor perguntou, vou responder.
Não saí de casa com a antecedência necessária porque não estava em casa. Estava
no escritório.
O guarda, usualmente rapaz comedido, está cada vez
mais contrafeito, em vias de ficar enfezado, doido de vontade de entregar-se de
corpo e alma às delícias da fúria. Estufa o peito e vocifera, ar ladino de quem
não se deixa enganar facilmente:
– E posso saber por que não saiu do escritório com
a antecedência necessária?
A moça, que não é boba nem nada e já esperando a
pergunta, arregala os olhos e ataca com voz estridente:
– O senhor pode não acreditar, mas antes de sair
para o banco eu tinha levado meu pai ao hospital.
O policial, calejado que é em lidar com inventivos
motoristas infratores, tasca igualmente na lata:
– O que houve com o pobre velhote?
A moça, embora sabedora de que a vida é inesgotável
fonte de clichês e surpresas, está acostumada a tudo, menos a um guarda de
trânsito que chame seu pai de “pobre velhote”! Por isso, não se contém e
sapeca:
– Teve uma crise hiperglicêmica!
– Ah, é? Quanto de glicose? – desafia o guarda
triunfante, certo de ter deixado a moça num beco sem saída.
– Mais de trezentos! – ela sacode na pinta,
olhando-o com ar maroto e zombeteiro.
– Bicarbonato sérico?
– Inferior a dez!
– Osmolalidade plasmática?
– Variável!
– PH arterial?
– Sete! Como o senhor sabe, a diabetes é uma doença
grave...
– Poxa, de fato! O coitado estava na pindaíba...
– Acho que o senhor quer dizer “nas últimas” ou
“dobrando o cabo da boa esperança”! – Quem exclama triunfante agora é ela,
rindo de desdém. – Além do mais, duvido que o senhor saiba o que é pindaíba!
– Saborosa fruta da família das anonáceas,
própria para sucos e ideal em batidas de vodka para a praia em dias de verão! –
ele bate o martelo, superior. – Além disso, qualquer semiliterato sabe que é
“o” diabetes, não “a” diabetes!
– Só usei o artigo feminino para não soar pedante!
– ela coroa, tentando desarmar o policial.
– Chega de papagaiada! – Ele ergue as duas mãos à
altura da cabeça num gesto de impaciência. – Voltemos ao que interessa. Excesso
de velocidade...
– Ah! Não multa não! Guarda para depois!
– Com esse trocadilho, agora são duas multas! – ele
exulta, vencedor.
– Mas onde é que estamos? – ela indaga.
O policial, sem saber se a pergunta foi apenas
retórica ou se de fato ela não sabe onde está, responde:
– Na BR4. Acostamento. Perto daquela cidade – ele
aponta com o braço para a frente.
Quando ele ergue o braço, um passarinho chilreia
candidamente em algum lugar no alto. Ambos olham para cima e ouvem um ligeiro
“puft”.
– Veja o que o senhor fez no meu para-brisas! – ela
indigna-se, dedo indicador em riste pressionando o vidro pelo lado de dentro. –
Titica de pardal!
– Que pardal, nada! Rouxinol. Era só o que faltava.
Confundir...
– A culpa é toda sua! – ela acusa, quase enfiando o
mesmo dedão indicador nas fuças do policial.
– Vejo que a senhora apela para qualquer coisa na
tentativa de mudar de assunto. Mas não sou tolo. Ultrapassar o limite...
A moça, deixando de lado o cocô do passarinho, não
pestaneja e devolve:
– Com o perdão da palavra, quem diz que não é tolo
não passa dum tolo!
O guarda, já acostumado a lidar com motoristas
imprudentes e sem graça, sempre em busca de pretextos para safar-se das
penalidades pelas infrações que cometem, não deixa barato:
– Então me diga como devo chamar quem recorre à
desculpa que a senhora usou, que, mais que esfarrapada, é rota, malcheirosa e
desdentada, para ficarmos apenas nos adjetivos mais evidentes!
– Desculpe o mau jeito, seu guarda, mas o que o
senhor acabou de dizer é uma baita duma inconsistência, digna de figurar hors
concours no salão de honra do museu do asneirol, se houvesse um!
– Sem querer apelar para a ignorância nem descer
para a baixaria, devo dizer que a senhora nada mais é que uma sirigaita !
Ela olha para ele estupefata. Vendo que acertara no
alvo, ele mete bronca, escandindo as sílabas com os lábios retesados:
– Si! ‘Ri! Gai! Ta!
– Vê-se que o senhor é pródigo em pontos de
exclamação!
– A senhora é que não conhece pontuação!
– Duvido que o senhor saiba o significado de
“sirigaita”! Se soubesse, não perderia tão facilmente as estribeiras!
– Pois então me diga o que significa “estribeiras”?
A moça abandona definitivamente o ar blasé de
superioridade, faz um gesto irritado com a cabeça, pisa fundo no acelerador e
arranca, o carro guinchando os pneus.
O guarda... bem, o guarda empunha o talão de multas
e põe-se sofregamente a garatujar, pois naquela cidade é isso que, entre outras
coisas, fazem os guardas.