Aquele dia naquela cidade aconteceu algo estranho.
Não se sabem os antecedentes – são conhecidas apenas as consequências, que
procuraremos narrar ipsis litteris (ou ipsis verbis para leitores
mais enjoadinhos avessos a lugares-comuns).
Naquela cidade havia um quartel do
exército. Como em qualquer quartel de toda e qualquer cidade em que haja
quartéis, naquele quartel havia soldados. E os havia às pencas. Para sermos
exatos, às centenas. E se quisermos primar no duro pela precisão, podemos dizer
que havia dezenas de centenas deles no quartel daquela cidade em que algo
estranho aconteceu.
O ano era o corrente. Ou quem sabe o
passado. O mês, de outono (que, como todos sabem, é a mais insuspeita das
estações). E se também quisermos ser precisos quanto ao dia, podemos dizer que
era um dia de abril, maio, junho. E da semana, para retratarmos rigorosamente
os fatos.
E agora que já nos localizamos no
espaço e no tempo, passemos ao que aconteceu de estranho no quartel do exército
daquela cidade aquele dia duma semana de outono.
Foi assim:
Um dos soldados, de primeiro nome João,
José, Carlos ou Bento, foi escalado para a faxina da latrina do quartel. Ele
está passando preguiçosamente o esfregão num dos cagaradores, digo, privadas.
Rapaz de biótipo nordestino, a pele
morena é herança das surubas que seus antepassados escravos e indígenas faziam
na Mata Atlântica longe dos olhos sorumbáticos e malemolentes portugueses. E os
olhos verde-topázio vieram dos holandeses, que alguns meses antes tinham quebrado
a cara na tentativa de invadir e ocupar um pitoresco bairro chamado Bahia, dos
mais importantes daquela cidade. (Malogro que séculos depois os habitantes
lamentariam amargamente, pois todos os cafuzos do lugar queriam ter olhos
verdes, azuis ou pelo menos castanho-claros.)
Pois bem. Acha-se o soldado João, José,
Carlos ou Bento distraído em sua estratégica operação higienizadora. Tem o peito
estufado e a barriga encolhida, como soem ter os valorosos guardiões das
fronteiras nacionais e das riquezas que há dentro delas. Maneja habilmente o
esfregão com punhos dispostos a esmurraçar pela pátria.
Nisso, um dos muitos sargentos daquele
quartel, de sobrenome Mendonça, Ari, Lucca ou Katinsky, adentra garboso a
latrina, peito encolhido, barriga estufada, coisa e tal.
– Sentido! – vocifera o recém-entrado
sargento, pisando duro para que os tacões emprestem à latrina um bom e saudável
ar caserneiro.
O soldado imediatamente leva os dois
braços à frente, apresentando armas com o esfregão à altura do peito em sinal
de respeitosa prontidão.
O militar de patente mais alta bate
continência em consideração a tão prestativa prova de servilismo e dá duas,
três, oito voltas em torno do soldado. Quando começa a sentir vertigem de tanto
zonzear, para e encosta pândego na parede, segurando a ponta do queixo entre o
indicador e o polegar da mão esquerda e fazendo expressão zangada.
E relincha colérico:
– Este lugar está uma pocilga!
Os olhos de João, José, Carlos ou Bento
ficam instantaneamente marejados.
O sargento não se amofina:
– Você é um porco!
O rapaz franze os músculos do rosto e
soluça sob o inesperado e raivoso saracoteio do superior.
Mendonça, Ari, Lucca ou Katinsky
continua possesso, os olhos espargindo chispas, a bocarra, perdigotos:
– Uma vergonha para o exército!
– Eu quero papai! – por fim brame o
soldado, não suportando mais insultos e largando o esfregão e desatando em
choro torrencial e escondendo o rosto entre as mãos.
O sargento, que jamais esperou que um
subordinado pudesse verter tão copiosas lágrimas, ainda mais que nem tinha
ainda ordenado um ataque aéreo com bombas de gás lacrimogêneo, arregala os
olhos e ao mesmo tempo espreme o cenho, numa expressão de pasmo e revolta dura
de ver e mais dura ainda de descrever.
Por uns instantes o sargento tenta
formular mentalmente uma reprimenda que produza no soldado um choque de
assombro e acabe de vez com aquele abusado despudor. Há de ser bronca tão
retumbante, que fará tremer as paredes da latrina e será escutada além das
muralhas do quartel e ecoará nos céus daquela cidade feito estrondoso trovão a
anunciar o fim do mundo.
Tendo então a bronca prontinha nos
miolos, o sargento enche os pulmões, aperta os olhos e brada:
– Eu quero papai!
O soldado João, José, Carlos ou Bento,
mudo de espanto com a confissão de Mendonça, Ari, Lucca ou Katinsky, fecha a
boca com as duas mãos.
O sargento, por sua vez, arregala os
olhos, leva as mãos à garganta e deixa o queixo cair, sem querer acreditar no
que seus próprios lábios acabaram de dizer.
Ambos se olham confusos. Querem falar,
mas emitem apenas mumunhos incompreensíveis. Após alguns instantes de
hesitação, se atiram um nos braços do outro e soluçam:
– Eu quero papai! Eu quero papai!
Nesse instante o capitão, cujo
sobrenome é Mendes, Campos, Fernandes ou Braga, entra aflito na latrina, mão na
braguilha, pronto para sacar o pinto e aliviar a bexiga. Vê o sargento e o
soldado abraçados em tão abundoso pranto e estaca, atônito. Estica os dois
braços ao longo do tronco, apruma o espinhaço e começa a abrir a boca,
determinado a exigir compostura. Mas, ao invés de tascar o que naturalmente
seria um terrível carão nos dois choramingões, só consegue gemer:
– Eu também quero papai! Eu também
quero papai! – abrindo igualmente o berreiro.
João, José, Carlos ou Bento e Mendonça,
Ari, Lucca ou Katinsky interrompem o choro e erguem os olhos para Mendes,
Campos, Fernandes ou Braga. Alguém que testemunhasse a cena esperaria que ambos
estivessem espantados ante um oficial do exército nacional exibindo sem
constrangimento a mais sentida cara de chorão. Ao invés disso, se afastam um do
outro e fazem sinal para que o capitão se junte a eles.
E o trio se põe a lamentar:
– Eu quero papai! Eu quero papai!
O queixume vai crescendo em
intensidade. Logo chama atenção de outros militares. Cabos, tenentes, majores e
coronéis acodem à latrina para verificar o que se passa. E cada novo
recém-chegado fica enternecido pela cena, se entregando de pronto à choradeira
que agora se alastra da latrina para o rancho, do rancho para o alojamento:
– Eu quero papai! Eu quero papai!
Em poucos minutos a latrina está
lotada, sem espaço para mais um soldado sequer. O coronel Emiliano, Alves,
Pinheiro ou Salvador, entalado bem no meio do grupo de chorões por ter sido um
dos primeiros a chegar e por ter um dos choros mais estridentes, resolve pôr um
pouco de ordem na zona:
– Atenção, tropa! Eu quero papai! Todos
para o pátio!
Sem deter o pranto, apenas enxugando
uma ou outra lágrima mais doída, um a um os milicos começam a deixar a latrina
rumo ao pátio do quartel, onde poderão comunhar seu desamparo mais à vontade.
Os sentinelas, só observando enquanto a
massa de milicos se movimenta pelo quartel, a princípio tentam resistir,
temerosos de abandonar seus postos, mas logo se dão por vencidos e também
debandam para o pátio. Até os recrutas, que normalmente levariam três anos para
entender o que acontece à volta deles, saem de sua indiferença e vão assuntar.
E todos vão caindo no choro:
– Eu quero papai! Eu quero papai!
Em apenas três ou nove minutos o
quartel está tomado de comoção. Um magnífico grito uníssono leva a cada canto
daquela estranha cidade a comovente lamúria:
– Eu quero papai! Eu quero papai! –
entoam todos os militares-órfãos.
Todos, menos um. O general Hamed,
Russo, Dimopoulos ou Graça, comandante-em-chefe do segundo exército da quinta
região, está absorto em sua sala, pés na mesa, escutando pelo rádio frenética e
comovente narração da última partida do campeonato de boccia. De
descendência carcamana, o general não perde uma transmissão dessas nem que os
comunistas tomem o poder e mudem a cor das fardas do exército para rosa-pinque.
Fora do quartel, os outrora
indiferentes habitantes daquela estranha cidade abandonam seus afazeres assim
que escutam o formidável e quase ensurdecedor vozerio:
– Eu
quero papai! Eu quero papai!
Estupefatos, todos se entreolham (ou
pelo menos os que não estão sozinhos. Os que estão apenas olham para o céu
pensando ser o juízo-final).
Alguns se perguntam se o clamor provém
do estádio de futebol. Será a final entre o time daquela estranha cidade e o da
estranha cidade vizinha? Mas por que os torcedores estão berrando “eu quero
papai!” em vez de xingar a mãe, o pai e a tia do juiz?
Em alguns bairros mais afastados as
pessoas começam a repetir:
– Eu quero papai! Eu quero papai!
E logo a cidade em peso está cantando
numa só voz:
– Eu quero papai! Eu quero papai!
O mundo parece ter-se paralisado ante
tão lancinante cântico. Tirando bebês que ainda não sabem falar, não há um
único humano que não tenha aderido à comoção. Até os animais se deixam
contagiar. Cachorros vituperam. Gatos blasfemam. Porcos esconjuram. Políticos
latem, miam e lambem senhas de contas na Suíça.
Os habitantes, como se estivessem
acometidos da mais selvagem loucura, saem a perambular pelas ruas berrando a
plenos pulmões:
– Eu quero papai! Eu quero papai!
Nem mesmo o prefeito, que nunca dá a
mínima pelota ao que se passa naquela estranha cidade, consegue ficar alheio à
tremenda manifestação. Assim que sua secretária lhe transmite um memorando de
23 páginas em formato A4 pondo-o à par da situação, o mandatário expede ordem
para que os assessores mais diretos se reúnam no auditório municipal às dez e
meia sem falta.
No horário marcado, o prefeito, meio a
contragosto, deixa seu suntuoso gabinete de mesas em cedro, painéis em mogno,
guarnições e rodapés em jatobá, revestimentos das paredes em copaíba, cinzeiros
em cristal e porta-copos em papelão reciclado e se dirige ao estacionamento,
onde seu motorista o aguarda ao lado duma limo cor de caju com goiaba
silvestre.
O prefeito nota que os olhos do
motorista estão marejados, mas faz de conta que não percebe.
– Auditório municipal – ordena assim
que se instala no banco traseiro estofado com peles de jaguatiricas da caatinga
e indígenas adolescentes kaiowá enforcados, ornadas com pupilas de araras
azul-mandrová de olhos vazados.
Durante o trajeto, ele vai olhando as
calçadas, onde todos seus eleitores bradam às escâncaras a toada infernal:
– Eu quero papai! Eu quero papai!
O prefeito tenta ignorar o que se passa
à sua volta. Vasculha a consciência à procura de algo que lhe distraia os
pensamentos forrados de cédulas verdes e cifrões dourados jorrando do paço
municipal feito fonte da riqueza eterna. Às vezes gosta de fazer uma
brincadeirinha mental em que substitui a carranca do Lula estampada nas notas
de cem dólares por outra. Quem poria no lugar desta vez? Sim, aquela foto que
sua secretária lhe dera ainda aquela manhã ao chegar ao gabinete. Era foto dela
mesma, em pé numa praia mineira, de topless, torso meio torcido para permitir
que a câmara enquadre todo seu suculento e rechonchudo bundão engalhardetado
por um fio-dental furta-cor. Atrás (da foto), ela escrevera uma dedicatória:
“Ao meu prefeitinho predileto!”
É nesse singelo exercício introspectivo
que se acha a incandescente chapa de fritar e preparar tesouros para viagem
existente no cérebro do predileto prefeitinho quando ele é desagradavelmente
interrompido pela voz melosa do motorista:
– Chegamos, senhor prefeito. – E ajunta
bem baixinho para que o patrão não escute: – Eu quero papai!
O prefeito dá uma boa chacoalhada na
cabeça para dissipar o concupiscente torpor, desce do carro e ruma resoluto
para o auditório, disposto a pôr um fim naquela disparatada conspiração de
orfandade. Só pode ser coisa da imprensa oposicionista, enfurece-se, abrindo a
porta do auditório com um solavanco.
Todos seus 326 assessores diretos estão
ali. E cada um deles choramingando:
– Eu quero papai! Eu quero papai!
O prefeito se dirige ao mais direto dos
seus assessores diretos e ordena:
– Convoque uma rede municipal de
televisão agora mesmo!
A muito custo, o assessor mais direto
executa a ordem do prefeito. Proferindo entredentes umas boas obscenidades
(incluindo entre elas algumas inspiradas na foto da sua doce secretariazinha),
o prefeito volta ao seu gabinete.
Não muito depois, estaciona diante do
prédio da prefeitura um caminhão trazendo as duas ou oito toneladas de
equipamentos necessárias para a transmissão televisiva. Os técnicos descem do
caminhão e, ganindo “eu quero papai! eu quero papai!”, levam a parafernália ao
gabinete, sempre acompanhados pelo olhar severo do prefeito.
Concluída a instalação, os técnicos
anunciam:
– Vamos rodar, senhor prefeito! Eu quero
papai! Pode sentar! Eu quero papai!
O prefeito toma posição em sua mesa.
– No ar! Eu quero papai! – o
técnico-chefe avisa, se colocando atrás da câmara.
– Cidadãos! – o prefeito faz pose e
começa. – Eu quero papai! Eu quero papai! Eu quero papai!
E todos na sala:
– Eu quero papai! Eu quero papai! Eu
quero papai!
E todos na cidade:
– Eu quero papai! Eu quero papai! Eu
quero papai!
E foi assim aquele curioso dia naquela esquisita
cidade. E aquela noite também, sem que o estranho choro dos órfãos cessasse por
um segundo sequer. E quando a atormentada noite acabou com a chegada duma nova
aurora, todos os habitantes daquela cidade retomaram a manjada e segura vidinha
de sempre.