Ao contrário do meu dulcíssimo Rimbaud,
não preciso afundar na barbárie da Abissínia para passar estimulante estadia no
inferno. Basta uma esticada até o “laboratório” de análises clínicas aqui na
esquina para fazer um eletro. Arthur não carecia de estímulo não autóctone.
Nasceu alucinado, e morreu. Adolescente-terror, prodígio na sala de aula,
encerrou a carreira poética aos tenros vinte, num dos mais enigmáticos casos de
aposentadoria artística precoce ever. Ganhou mesmo de bacharéis uspianos que
nem atingem os 45 e penduram a chuteira prosopopéica, renunciando inclusive a
ensinar a seus futuros exegetas sabáticos cabeça-limpa o que teria levado o
doidivanas Arthur a trocar uma confortável cadeira estofada na academia
francesa de letras por surreal carreira de contrabandista de armas na África.
Flaubert preconizava, “seja regular e ordeiro em sua vida para poder ser
violento e original em sua arte”. Arthur não quis seguir o conselho. Eu, sim.
Afinal, sou um burguesinho xarope e maricas. Tenho horror ao desconforto. E
virar cacho dum poetão mais velho tal como Rimbaud com Verlaine não é
exatamente meu projeto profissional.
Um ato prosaico como tirar o carro da garagem
revela-se proeza cinematográfica. Brasileiros e brasileiras dobram a 180 por
hora a curva antes de casa e, ao me avistar tentando uma reles marcha à ré para
me juntar a eles no trânsito selvagem, carcam o pé no
acelerador antes que eu tenha tempo de completar a manobra. Sou obrigado a voltar
à garagem e ficar outra meia-hora olhando aflito por sobre o ombro, à espera duma pausa
miraculosa no torrente de bestas desembestadas.
Depois duma eternidade canso por fim. Fecho bem os olhos, engato ré e acelero.
Seja o que o big boss quiser. Escuto pneus rinchando, outros guinchando, outros
bramindo numa sucessão de freadas bruscas. Fôdasse. Causar uma batida agora
seria o menor dos suplícios. Vou recuando torcendo para que meu algoz seja um
Scania R114 de 500 tons, assim viro paçoca instantânea sem tempo nem para meu
derradeiro versinho. Ufa, miraculosamente íntegro. O big boss nunca me dá
ouvidos, fedepê. Os selvagens começam a se afastar, me fuzilando com carrancas
de que nem Olivier interpretando Macbeth seria capaz. As mulheres são as mais
ferozes. O mundo governado por mulheres não duraria uma semana. Para chegar a
essa conclusão científica é só observar o trânsito dez minutos.
Roberto Damatta dizia no livro aquele que a calçada é onde a espécie brasílica
se socializa. Errado. É o asfalto. As escolas de sociologia, antropologia e
congêneres podem baixar as portas. Uma excursão pelo inferno do nosso trânsito
é suficiente para um mergulho intelecto-masoquista na nossa civilização. Está
tudo lá: a presunção neurótica de eu tenho direito a tudo, você a nada; a
selvageria decorrente do “desapego” às leis, a indisciplina, a arrogância, a
bestialidade, a lei do mais forte, a entropia. E tem gente que olha Lulla,
congresso, juízes, “instituições” do país e se espanta. Go figure.
Tendo concluído a integração ao tráfego com relativamente poucos traumas irreversíveis, boto primeira e lá vou eu. Será um km e meio de tortura até o prédio da clínica. Tudo por um eletro. Já sei. Vou chegar morto e assim prescindir do trânsito, estacionamento, manobrista, “atendente” do estacionamento, fichas isso e aquilo, calvário de meio quarteirão até o prédio aturando esses olharezinhos intrusivos com que brasileiros e brasileiras vindo em sentido contrário na calçada têm mania de querer escarafunchar a tua alma, porteiro, mostrar id ─ me tomam por Osama? Osama tá por fora ─, tapar o nariz para pular dentro do elevador carregado de ar viciado de puns e outras excreções da espécie, morrendo de medo de que chegou a minha vez de ficar preso, a cada andar me vendo na pele do Fortunato ─ gosh, que nome o Edgar foi dar pro rapaz! ─ de Cask of Amontillado.
Décimo-quinto, deo gratia. Saio e entro na “recepção”, caos sulfúrico. “Atendentes” cafuzas louras fake marchando para cima e para baixo socando com fervor suas ferraduras de 15 cm de altura contra o piso imitação de granito para produzir estampidos secos e duros que fariam inveja aos SS de Herr Adolf. Me aproximo hesitante ─ sou um rapazinho tímido, u know ─ do balcão, sem me atrever a erguer os olhos para a “atendente”, não quero nem de longe dar a impressão de que sou um rasputin intimidante. (Sou, mas agora não vem ao caso.)
A “atendente” está berrando ao telefone, ao lado de outras oito ou nove berrando ao telefone ou zanzando em todas as direções com cara de perdidas num aquário, me levando à loucura com suas ferraduras-fashion, se esforçando ao inefável para não tomar conhecimento de mim e de outros coitados que vão entrando à cambulhada. Juntas formam uma algaravia embevecedora que me transporta dejavuisticamente ao instante em que furei a bolsa de mamãe depois de quinze meses de luta e entrei de sola no mundo. A “atendente” ─ mistura do Charles Bronson com Mike Tyson de peruca amarelo-ouro ─ finge não me ver parado feito um mané diante do narigão dela, prossegue histérica ao telefone, me fazendo ter pena do miserável do outro lado da linha que deve estar amaldiçoando tanto quanto eu planos de saúde e a medicina moderna e laboratórios clínicos. Passados quarenta minutos, a loirinha mike-bronson resolve bater o telefone e me dirigir um olharzinho insolente, hostil, debochado e compassivo, numa infeliz combinação de sentimentos poucas vezes vivenciada por algum ser humano neste mundo. Estendo respeitoso, quase hesitante, o pedido do exame emitido pelo dr. Hélcio, um santo, e começo a tirar dos bolsos os documentos e cartões que charlie-tyson me “solicita” com candura e elegância.
Tendo concluído a integração ao tráfego com relativamente poucos traumas irreversíveis, boto primeira e lá vou eu. Será um km e meio de tortura até o prédio da clínica. Tudo por um eletro. Já sei. Vou chegar morto e assim prescindir do trânsito, estacionamento, manobrista, “atendente” do estacionamento, fichas isso e aquilo, calvário de meio quarteirão até o prédio aturando esses olharezinhos intrusivos com que brasileiros e brasileiras vindo em sentido contrário na calçada têm mania de querer escarafunchar a tua alma, porteiro, mostrar id ─ me tomam por Osama? Osama tá por fora ─, tapar o nariz para pular dentro do elevador carregado de ar viciado de puns e outras excreções da espécie, morrendo de medo de que chegou a minha vez de ficar preso, a cada andar me vendo na pele do Fortunato ─ gosh, que nome o Edgar foi dar pro rapaz! ─ de Cask of Amontillado.
Décimo-quinto, deo gratia. Saio e entro na “recepção”, caos sulfúrico. “Atendentes” cafuzas louras fake marchando para cima e para baixo socando com fervor suas ferraduras de 15 cm de altura contra o piso imitação de granito para produzir estampidos secos e duros que fariam inveja aos SS de Herr Adolf. Me aproximo hesitante ─ sou um rapazinho tímido, u know ─ do balcão, sem me atrever a erguer os olhos para a “atendente”, não quero nem de longe dar a impressão de que sou um rasputin intimidante. (Sou, mas agora não vem ao caso.)
A “atendente” está berrando ao telefone, ao lado de outras oito ou nove berrando ao telefone ou zanzando em todas as direções com cara de perdidas num aquário, me levando à loucura com suas ferraduras-fashion, se esforçando ao inefável para não tomar conhecimento de mim e de outros coitados que vão entrando à cambulhada. Juntas formam uma algaravia embevecedora que me transporta dejavuisticamente ao instante em que furei a bolsa de mamãe depois de quinze meses de luta e entrei de sola no mundo. A “atendente” ─ mistura do Charles Bronson com Mike Tyson de peruca amarelo-ouro ─ finge não me ver parado feito um mané diante do narigão dela, prossegue histérica ao telefone, me fazendo ter pena do miserável do outro lado da linha que deve estar amaldiçoando tanto quanto eu planos de saúde e a medicina moderna e laboratórios clínicos. Passados quarenta minutos, a loirinha mike-bronson resolve bater o telefone e me dirigir um olharzinho insolente, hostil, debochado e compassivo, numa infeliz combinação de sentimentos poucas vezes vivenciada por algum ser humano neste mundo. Estendo respeitoso, quase hesitante, o pedido do exame emitido pelo dr. Hélcio, um santo, e começo a tirar dos bolsos os documentos e cartões que charlie-tyson me “solicita” com candura e elegância.
A essa altura estou suplicando internamente que um infarte ─ aquele cuja
prevenção, ou tentativa de, me trouxe a este inferno in the first place ─ me
poupe do martírio. Em vão. Venho tentando desenvolver uma técnica de enfartar
reflexamente a “estímulos” externos ─ que, como todos sabem, abundam Berção
afora.
Duas horas e lá vai pedrada depois outra cafuza, essa mais viking que as
demais, invoca sonoramente meu nome, me arrancando do meu inútil exercício
suicida. Com um policialesco aceno do focinho, a deusdede nórdico-maranhense me
convoca a entrar na salinha do eletro. Me manda tirar a camisa e deitar na maca
de barriga para cima. Obediente que sou, me ponho industriosamente a delirar
que é chegada a hora do transplante.
Na tevê onipresente cenas inacreditáveis de hospitais dos “sus”. Corredores
atulhados de mulambeiros jogados em colchonetes no chão, frascos de soro
mantidos no alto por parentes e apiedados. Não sou de fazer perguntas, mas esta
é irrecorrível: por que não se revoltam ante a distopia? Sempre que sou
obrigado a aguardar meia hora num muquifo desdenhosamente camuflado de
laboratório clínico me sinto transbordar de humilhação. Mesmo ter de esperar
quinze minutos meu dr. Hélcio, particular, chega às raias do insuportável.
Nessas horas desando a alimentar a imaginação com pás das pedras, minério de
dor e sangue que compõem o suplício diário do povão tentado me ver no lugar
deles. Impossível, laririlarará. O Etienne de Zola era um carinha cordato. Os
desgraçados não se revoltam. Um ou outro se limita a descolar um ferro e arrancar
os trocados que nós classes-médias capados juntamos ao ponto do enfarte, às
vezes nos mandando para o Hades quando decidimos que não é justo dar nossa
grana pr'um favelado indócil que não conhece o princípio do merecimento. A
grana dos nossos impostos vai indo quase todinha para a casta enclausurada nos
sistemas “públicos”. Casta composta de políticos, funcionários públicos,
senhores cartoriais e ONIs (Outros Nababos Inindentificáveis), aparelhadores
peetistas, tucanos, dirceuistas, quercistas, sarneiistas e escambauistas.
Mansinhos, aguardamos meio impacientes nossa vez no abatedouro.
Que será acontece com essas crianças prodígios, né Wil? O seu dulcíssimo Rimbaud parou de escrever aos vinte; nos mesmos 20, um dos maiores visionários de todos os matemáticos,o assombroso Galois,escreveu sua última e triste anotação, "Não tenho tempo..." Será porque franceses? Ou nada a ver?Outro, Niels Abel,aos 26 ! Imagine esta turminha de genialidade fascinante, encarando o desafio de conviver mais a gente aqui, em terras brazucas com os mamadores imputáveis peetistas, tucanistas, escambuistas,piissoistas,temeristas, dilmistas, etc e tais. Que descalabro né mesmo poeta Ainda bem temos seus textos pra ler
ResponderExcluirAi ai Sue Cida, magine se a maioria morresse antes de se converter em torresmões ambulantes decrépitos com suas bocarras imundas a jorrar asnices sem parar continuamente ininterruptamente sem parar incessantemente sem parar perpetuamente sem parar eternamente continuamente sem parar incessantemente sem parar sem pausar sem descansar sem calar ...
ResponderExcluirAinda agorinha, Wil, lembre-me de uma máxima não sei a autoria. É que não me recordo nem onde eu li, que diz o seguinte: "...toda a decadência de um indivíduo ou de um povo, começa invariavelmente com a perda do pudor e da reverência pela vida, quer material, quer espiritual." falo dos descarados que detém as chaves dos cofres e as canetadas nas mãos sôfregas, crispadas, gananciosas,sem parar,continuamente sem parar...
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