Contra a contracorrente

In tempo d'un menuetto

Caras do contra feito eu somos olhados como se devêssemos estar num zoo. Eu particularmente gosto. Suscitamos algo instintivo quase ideológico. Não é moleza. Requer estômago. Literatura à parte, é por que curto Bernhard, Dostô e poetas gauches defacto daqueles que Drummond pretendia ser e não foi. O zé-ninguém que não me entende simplesmente torce o nariz e segue em frente. (Torcer o nariz é o que tem salvado a humanidade até aqui.) O zé-ninguém que me saca um pouco provavelmente sente algo de pânico. Estamos atravessando os píncaros da autoindulgência hedonista. Estou cercado de bon-vivants grotescos. A maioria de vocês quando muito experimenta um bocadinho de enviesamento ao passar em brancas nuvens pela adolescência. O Grande Hiato. Parênteses a que não se dá importância. Salvo-conduto para loucuras soft. Desde que não raiem a aberração. Meus parênteses começaram quando nasci e terminarão quando eu morrer. Na adolescência minhas nuvens foram só mais negras do que são o resto do meu tempo. Lembro que meu céu era baixo. Tanto, que me sentia vivendo agachado. A cabeça sempre enfiada na negridão acima dos meus ombros. Meu mundo é pequeno. Pequeno, não ─ apertado. Ainda. Não espero mais que não seja. Aprendi a morar na minha própria lata. É parte de mim qual minha roupa, essas havaianas que nunca tiro. (Sinto que estou chegando lá.) (Talvez mais umas cem palavras.) (Não posso me distrair agora.) Aquela história de viver na cabeça da minha mãe aí embaixo é verídica. Fiquei chateado de ter de parar de descrever o que é morar na cabeça da mãe. Podia prosseguir indefinidamente. Era uma oportunidade de esclarecer algumas coisas, sinto, não apenas de catarse, palavrinha de que não sei se gosto ou me enoja. Nos últimos tempos venho percebendo que escrever é meio psicanalítico. Isso, sim, é nojento. Gosto de mim neurótico como sou. Não se trata só de questão de costume. Os analistas têm razão com a balela de sentir-se confortável consigo mesmo. Vocês não sentem incômodo sequer na adolescência, que dirá etc. Uma época invejava. Vocês são um caso sério. Totens ao redor do qual rodo minha ciranda. Às vezes me vejo aí no meio. Não sei se quando me vejo é porque me sinto mais deslocado. Estava tentando evitar deslocamento. Estranhamento, cruzes, nem pensar, me dá arrepio. Já disse mil vezes, como diz a Soninha, quem disse que custa repetir, quem escreve escreve pra se repetir numa autoafirmação infinita, talvez sempre incrédulo de saber ser o que de fato é, em estado permanente de auto-rebelião. (Nariz achatado contra a parede, síndrome de Fortunato, a natureza não me concedeu a dádiva da marcha à ré.)
(Fiz uma pausa pra recarregar forças, perdi o fio, vou ter de pegar no tranco.)
Dou um passeio pelos blogs presunçosamente literários por aí, mau-gosto a granel. Tem uns blogueiros que se autodenominam poetas, assim: mariazinha poeta da silva, zezinho poeta de sousa. (Será que o tranco foi mais pesado que o necessário? Queira deus que sim.) (Veja como é fácil escrever aqueles seriados americanos dolorosamente previsíveis, o incessante levanta-a-bola-que-eu-chuto, ou então fulano faz a mais solene das declarações só pra ser sumariamente desmentido pela próxima gag, e a claque, assim até eu.) Experimento perturbador mal-estar quando saco a fórmula por trás da poesia dum cara. Aprendi a avaliar a "qualidade" dum poeta pelo tempo que levo pra sacar a fórmula. Ou, vá lá, dum escritor, seja qual for, mesmo "geniais". Na poesia é mais fácil. Mais rápido. Há os em que a dita salta aos olhos. (Recaída no velho maneirismo depois duma fase de refrescamento, acho que não tenho como escapar. Quero mesmo escapar? Duvido de tudo que escrevo, duvido de tudo que penso que sou.) Os que só fazem dissimular que usam sua fórmula, esses são os de dissimulação mais brilhosa. A perseguição gato-e-rato em que o sujeito não vai além de tentar esconder o que não pode ser mostrado. O "estranhamento" é o primeiro sinal de alerta. Há alternativa aos truques em que você é enfiado num buraco num ponto qualquer entre o inédito e o inaudito e o alheio e o desconhecido para assim ser "arrebatado" e daí passar por uma "experiência" esclarecedora? O poeta quer que você se veja pelo lado de fora. A premissa (nunca pensei que um dia fosse escrever essa palavra com todas as letras) é que buscamos o tempo todo o autoconhecimento ou, para os menos pretensiosos, um tico de conhecimento do mundo em que vivemos e, se possível, de nós mesmos. Os estudantes de letras dão de barato que o caminho é a experimentação estética. De tanto tomarem o ônibus pra faculdade e desejarem comprar um carrinho pra exibir pros amigos e levar a namorada à praia e ao chópin e abandonarem a pobreza em que todos nascemos pra atingir a liberdade do fausto monetário, acabam pensando que existimos pra tomar um rumo na vida. Eu mesmo me emocionei quando moleque li The Road Not Taken, de Robert Frost. (By the way, decorei o poeminha na primeira, embora essa gente que decora poemas e desanda a recitar pra impressionar meninas me dê engulhos, você já reparou quanta gente sabe de cor uma tonelada de versos de Camões? eu já.). Bobby depara com duas estradas e não sabe pela qual se decidir, poor guy. Cada vez que leio tiro uma conclusão, num aparente jogo de espelhos com o próprio poema, jogo que funciona porque deliberado. Parece que você sempre tomará a errada, não importa pela qual opte. Para Frost, o único jeito seria tomar ambas. Sendo um dos poemas mais conhecidos da literatura americana, quase mesmo popular, mostra que meio mundo e seu tio curte sua sina de andarilho. Vagar, divagar, somos dom quixotes, On the Road de Kerouac, que fantástica epopeia literária, fiquei anos fascinado com o vagamundo, misterioso Dean Moriarty. Nunca entendi direito aquele poema-clichê da pedra no caminho de Drummond. É premissa demais pro meu gosto. Se fosse eu, nunca toparia com a desgraça. Não tomaria o caminho in the first place. Não sairia de casa. Não saio de casa. Nunca. Não saio de mim. Fazer o que lá fora? Tá cheio de monstros, fantasmas, ninfas, sátiros, duendes e outros serzinhos da minha mitologia particular. Afora lullas, dilmas, FHs, aécios e meu vizinho Smash, estranho rapaz que habita meu lado esquerdo, a filha do médico que mora do direito e que toda manhã traz seu poodle pra cagar ao pé da primavera que temos na porta de casa, o caipira aposentado da geême que mora em frente que passou a vida apertando parafuso (o tolinho Chaplin pensou que ninguém no mundo poderia se contentar em passar a vida apertando parafusos, artistas não sabem nada) e guarda três carros do ano na garagem e me olha de cima como se tivesse me demonstrado algo profundamente básico na nossa coexistência de vizinhos que mal se toleram.
Agora lembrei. Quando tive a ideia de começar a escrever esta gororoba estava pensando no Quintana. E disse pra mim mesmo, é agora. É agora que baixo o sarrafo no cara. Sempre tenho gana de esculhambar o Quintana quando penso nele. O poeta bom-mocista. O poeta-gracinha. Galã do panteão. Tão simpático. Tão otimista. Perseverante. Afirmativo. Empático. Sempre algo bom a nos dizer. É ler e se identificar. Impossível não querer levar pra casa, botar em cima da penteadeira qual um ursinho de pelúcia. Metade da vida mendigando uma boquinha na academia geriátrica de letras, que lhe respondeu cuma banana atrás da outra. Não sei ler a poesia dele sem imaginá-lo de pires na mão atrás de sarneys e generais de pijama e críticos medievais por um voto. Poetas não podem nutrir esse tipo de vaidade mundana. Poetas não são gente. Poetas têm de levar ferro, têm de sentar ferro, não podem ser homenageados, condecorados, citados, idolatrados, conhecidos, imitados. Amanhã vou tentar enquadrar Quintana de novo. Espero não estar tão complacente quanto estou hoje.


Um comentário:

  1. Sempre que te leio, chego vazia e saio cheia. Senso de humor ímpar o que tens. Chego Zenilda e saio Amara. Krakauer ou Kerouac?
    Aguardo sua visita.

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