Vate preguiçoso

para Sue Cida 


É tarde. Estou cansado. Me jogo na poltrona, cabeça congestionada de tédio, sinais trocados, sentimentos em curto-circuito. Corpo irrepousável.
Minha velha poltrona, que já era velha quando meu pai costumava sentar-se exatamente como estou agora. 
Olho o forro da sala, estriado de trincas do tempo, emaranhado de veios que guardam as respostas. 
Porra! poesia agora não! Tento resistir. Mas já é tarde. 
Com o canto dos olhos vejo a miserável espreitando. Vem chegando. Aconchega-se. Me cutuca. Tem a cabeça coberta por um capuz de pom-pom e o coração carregado de ardis. 
Estou cansado, maldita! Não quero me assombrar. Não quero descobrir. Não sou navegante, não gosto de física nem metafísica. 
Agora é tarde! Ela parece troçar de mim escancarando sua terrível bocarra de dentes encavalados e afiados, sôfregos lábios ressecados de anciã despudorada. 
Apoio o cotovelo no braço da poltrona, espalmo a mão para cima e sustento pelo queixo a cabeça que não quer outra coisa senão tombar. 
Já não te disse, ó virulenta, que para te alimentar preciso de disciplina, sobretudo disciplina, uma das muitas virtudes que não tenho? 
Olha! Vê minha carne flácida de molusco indolente, minha cara branda de epicurista sem-vergonha! 
Tivesse eu o corpinho enxuto do Drummond! Aquele sim era um poeta atlético. Num salto ágil, cultivado em décadas de exercício, pulava, te laçava em pleno ar, ó tarada. Antes que tocasses o chão ou te escondesses dentro do poço do cotidiano. Era um craque contumaz. 
Mas eu, quando vens vindo, e vejo que vens solerte, sorrateira, torço meu nasone italiano, desdenho, "Que venha! e que vá com saúde! E dê saudações aos seus!" 
Ai, que gigantesca preguiça do tamanho dum bonde! Ter de parar o que estou fazendo, violar a lei da minha inércia. Queres lei mais imperiosa que essa? 
Olha, moça, aqui vai uma recomendação: 
Podes passar batido, pois estou descansando. E quando descanso, me desobrigo de tuas visitas. 
Tenha dó. Olha que desânimo de pegar no batente! 
Pra que interromper o sono da vida? 
Essas façanhas estéticas são para os carlos e que tais, estetas tesudinhos. 
Ai que preguiça de viver. E ainda ter de fazer poesia! 
Deixemos a parada com o cabral macho, que além de melo ainda era neto e além de neto, joão. 
Tão ligeirinho. Recifense esfomeado sempre pronto para a fartura. 
Ou pro mané, outro pernambucano, esse sim legítima vocação. Tão frágil! Tão criticamente tísico, preparadinho para empunhar a "insopitável" espada da dor. Tão desnutrido, que era até amigo do rei. 
No conjunto, um amanuense e dois diplomatas. Já que é assim, juntemos logo um moraes também diplomata e um mendes escrivão, que é pra completar o time dos funcionários públicos. 
Ô gentinha abominável. Fazendo poesia às custas do contribuinte. 
Olha, dona. Não tenho vocação pra trabalhar 24 horas por dia. E, aproveitando este momento de sinceridade, não tenho vocação nenhuma. 
E não tô a fim de cumprir plantão. Sendo um desleixado — sequer sei por onde diabos anda minha lira! 
E tu, nojenta, concreta e abstrata, por que vens me atanazar com teu bafo virulento se sabes que tenho estômago fraco? 
E por que me deixas te agarrar o paquidérmico busto de Apolo só para que me escapes por entre os dedos? 
Escuta, cretina! Não sou automático feito elevador em que podes 

embarcar profunda 
subir sem pátria 
descer morta 
e desembarcar na Barra Funda
como se fosse prosa.


Um comentário:

  1. Wow, põe bronca mesmo nessa Dona, poetíssimo! Ela vive me atazanando também.E não dê moleza! Vem com aquelas conversinhas cheias de 'ardis', que "tudo tem que fluir através de nós,que devemos vencer a resistência, que aí está o poder de restauração, de regeneração" e de sei lá mais o quê! Que "criação é renovação e se consegue num piscar de olhos"!Ela não sabe que nós artistas, temos que ser um tico reticentes, ara! É que os não-artistas e essa tirana maléfica anciã não sabem que já nascemos com uma carta na manga,né Wil, que a qualquer momento,mas quando bem o quisermos,um ser invisível habitante dos ares se apodera de nós qual uma ave de rapina se apodera de suas presas e as arrebata, e vem nos segredar palavras mágicas e empolgantes aos ouvidos.É então que aquele esplendor entre tantos outros aprisionados desde tempos imemoriais, vem a tona, com luz e leveza e plenitude para o deleite de todos.Assim que acontece tudo. Obrigada Wil

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