Reflexos no fundo da xícara


 (ou o estado de graça em eternos três segundos)

Levo a xícara de café aos lábios. Sinto um tremor. Vejo uma vaga imagem refletida na luzidia superfície do líquido negro. É uma cabeça humana. Por eternos três segundos fico esquecido.
Esquecido e assoberbado. Ao me ver olhando o que seria eu, vem uma febre de orgulho, sou testemunha de circuitos nevrálgicos que se energizam instantaneamente, estabelecendo num átimo miríades de relações e identificando sentimentos mortos que ressuscitam.
Afasto o olhar da xícara, fito a parede. Que maravilhoso mundo interior esse dos bípedes que habitam esta terra. Nos mantém algemados em eterna órbita em torno de nós mesmos.
Até quando? Levo o olhar de volta ao fundo da xícara.
O tremor que senti abalou o repouso da superfície do café. A imagem desvaneceu, o momento fugiu. Só restam negras ondinhas. Vai ver tudo se resume a incessantes, variegadas perdas.
Mas não estou disposto a renunciar facilmente ao enlevo perdido. Me compenetro, tentando reconstituir à força o estado de graça.
Forjo uma sensação de poder, tão efêmera quanto a ilusão de plenitude.
Ora, caçoo, que frívolo, querendo brincar com reflexos da sua própria imagem. Tudo que você fez foi entrevê-la no luzidio espelho de café.
Reconduzido ao meu habitual estado de macambúzio, apelo. Agora é tudo ou nada. Flexiono os pensamentos em ginásticas impossíveis, me agarro a experiências conscientes de “estranhamento” com o mundo exterior, escarneço das minhas quedas em profundidades do espírito brincando com sensações infantis.
Ai, parece que estou novamente enganado. Tudo soa tão perdulariamente supérfluo. E pensar que as respostas – talvez algumas, não todas – estão escondidas em vidas esquecidas a flutuar fugidias, evanescendo inapelavelmente no passado.
Queria ter coragem, gritar, quero pelo menos o que sobrou das minhas ralas ilusões.
Volto por fim ao meu estado de objeto inanimado. O que houve com o espírito rico de perspectivas que estava aqui ainda há pouco?
Espio o fundo da xícara. Um olhar nostálgico, eis tudo que me resta.


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