O tombo


Literalidades

— Já sei. Me viu cair e veio ver se estou bem...
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— Se quebrei uma perna.
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— Ou fiquei paraplégico.
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— Nenhum arranhão, como pode ver. Apenas uma queda. Mais uma. Que poderíamos chamar de tombo. Pra não ficar muito solene.
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— Pois é. Estava passeando por esta rua. Rua... rua... Bom, não vem ao caso.
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— Agradável, aliás. Que ainda não conhecia. Há tantos anos neste bairro, nunca...
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— Estou calejado. Caindo desde criança, sabe como é...
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— Bêbado? Que é isso. Não... Bom, tomo uns birinaites de fim de semana...
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— Tá bom, tá bom. Às vezes, um porre. Mas esporádico.
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— Pode perguntar aos meus vizinhos. Vão dizer que nunca me viram pôr uma gota de álcool na boca.
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— Sabe o que é engraçado?
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— Nessas raras ocasiões em que encho a cara, aí é que fico em pé. Não caio nem que ponham o mundo de ponta-cabeça.
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— Nas outras horas, em compensação...
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— Já que estamos sendo francos um com o outro, vou dizer um segredo...
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— Promete não espalhar?
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— Caio todos os dias. Pelo menos uma vez.
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— No começo machucava. Até quebrei um braço quando criança. Na adolescência, ganhei arranhões, esfoladuras. Hoje tiro de letra.
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— E você? Quando foi a última vez?
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— Faz anos? Pois acredito. Afinal, tem gente que nunca levou um tombo.
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— Nem unzinho.
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— Dizem que no interior de Minas tem um homem desse. Até uma cidade. Exagero, claro. Uma cidade em que os habitantes nunca caem.
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— Quanto ao homem, é verdade. Não conheci pessoalmente, mas não tenho por que duvidar.
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— Dizem mais. Que não caiu nem mesmo durante o Grande Terremoto de sessenta e seis, que devastou o estado. A cidade desabou. Menos ele. Obviamente.
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— Que é um tombo, afinal? Com o tempo você aprende. Se cair bastante, até vira bamba.
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— Bom, nem preciso dizer. Você sabe.
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— Uns até pegam gosto.
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— Vêem que não é ruim como imaginam e começam a cair, mesmo sem precisão.
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— Outros, mais extremistas, se atiram logo duma vez...
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— E tem os radicais: pulam de cabeça.
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— Fazem até concurso. Tombo Mais Bonito. Tombo Mais Artístico. Tombo Mais Breve. Mais Definitivo. Mais Engraçado. E Assim Por Diante.
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— Alguns ficam exímios. No que caem, já se erguem. Outros capotam tão de leve, que não chega a ser tombo.
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— Uns, de tão destros, mais parecem estar levantando do chão.
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— Há também os que gostam de se arrebentar...
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— Podiam cair numa boa, mas preferem se estatelar...
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— Pode parecer brincadeira, mas não tem coisa melhor...
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— Experimente só pra ver. Vai gostar.
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— Comece devagar. Primeiro um pé. Depois o outro. Depois as mãos. Depois os braços...
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— Isso aí. Até chegar na cabeça. 
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— Se preferir, chame de outra coisa. Se estatelar é só uma forma de dizer, claro...
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— Deram esse nome porque não deram outro. Simples assim. Pra que complicar...?
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— Pra mim é um dos verbos mais lindos da língua portuguesa. Es... ta... te... lar...
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— Esborrachar? Também gosto...
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— Ruim pro espírito? Que nada.
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— Tem gente que fica mais feliz ainda.
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— Quando mais não fosse, tem tanto louco à solta por aí. Cometendo todo tipo de loucura...
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— Pode até ser. Mas não vejo como...
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— Tem gente que entra pro exército. Outros resolvem assumir a metade-mulher...
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— Estudando latim? Não estou dizendo? Cada um se vira como pode...
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— No fundo, no fundo, concordo...
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— Bom, poderia arrumar uma saída menos dolorosa...
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— Digo, dolorida...
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— É que na época ainda era meio imatura, sabe como é...
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— Tem uma coisa...
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— É só no outono.
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— Assim me preparo pro frio invernal...
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— Guarda outro segredo?
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— Causa desconhecida.
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— Na infância. Não tinha nem dez anos...
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— Gostava de ficar pensativo...
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— Só quando olhavam...
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— Pode-se dizer que sim...
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— Tem tanta coisa sem nome por aí que ninguém dá importância...
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— Amor, por exemplo. Pra pegar algo que conhecemos bem...
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— Mesmo sem nome, as pessoas falam dele o tempo todo. 
— ?
— E que dizer das estrelas? Tanta gente metida a poeta se encanta mesmo sem saber como chamar...
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— Aliás, era para elas que eu olhava quando caí...
— ?
— Pois é. Geralmente, é o que acontece quando se caminha pela rua olhando pro céu feito besta.
— ?

Um comentário:

  1. Este seu textículo esplendoroso me fez lembrar de algo que estava lembrando hoje de manhã: um tombaço que tive há alguns anos e alguns meses que me fez enfarinhar no chão. Viu como achei outra palavra tão bonita quanto estatelar? Esta queda fenomenal, como foi de barriga e joelho no chão,( mas tive outros tombos também menos expressivos, que não vale citação) me rendeu um cisto no joelho, cisto de Baker, me parece este, o nome. Para chegar a tal façanha,recordo-me ter ido a uma dessas entidades esportivas, quando morava em Sanca,lá nos primórdios, com interesse de fazer um esporte. Logo pensei em vôlei que é o que mais condiz com meu íntimo ( mas não sei explicar o por quê) Aí, a mocinha funcionária, consultando as vagas, viu que tinha uma pra turma de terceira idade. Falei pra mim mesma, "Ah, os velhinhos!?? hahaha vou tirar de letra quáquáquá". E fui no primeiro treino ( que por sinal não passou desse, foi primeiro e último, graças a Deus, virgem Maria!) Ocorre que era um time de EX atletas renomados da cidade e com um condicionamento físico que eu não chegava nem perto, Wil! ( me permite uma exclamação aqui, sei que você tem ojeriza delas... e estes três pontinhos aí) Pois é, você não calcula como eles me deixaram desnorteada, Deus-do-Céu. Como era um grupo misto, "as meninas" na sua faixa etária beirando os oitenta, ainda sugeriram, depois de me socorrer do tombo que eu fosse fazer um carteado com elas, porque óbvio, eu ficaria sentada. Ai que vergonha. "Os meninos", também uns ali, pouco pra lá dos 80, sugeriram que eu fosse treinar mais em casa,na parede, disseram.Credo, gente sem sensibilidade, sem senso de confraternização, sem senso de equipe, sem espírito coletivo! Bah eles não eram, afinal, um time, digamos, coeso.Nada a ver com minha índole. Não me acrescentaria nada mesmo! Só o cisto de Baker que de vez em quando me ataca, como hoje. Ah, Wil,mudando de assunto, de pato pra ganso, você viu como seus textículos são pertinentes e elucubrativos e reminiscentes?!

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