O ser e o clique

Ainda temos algo a salvo do avanço tecnológico que tem nos levado a um mundo cada dia mais infernal: a música.

Ou melhor, os instrumentos musicais.

A menos que os grandes intérpretes um dia percam o juízo e partam para pianos eletrônicos e violinos digitais. Dada a falta de limite da insensatez humana, pode bem ser que venha a ocorrer. Deo gratia, tenho certeza de que não estarei por aqui nesse dia fatídico.

A rapaziada deslumbrada que hoje entrega a alma ao facebook não desconfia que possa haver no mundo gente contra a tecnologia.

Que horror, não é mesmo?

Vou declinar apenas um dos mais célebres contendores antideslumbramento: Heidegger.

Como diz o também filósofo Richard Rorty, Heidegger foi um homem "ressentido, egoísta, desleal e desonesto". (Até parece que Rorty se referia a mim, mas duvido que me conhecesse...)

Sem falar, naturalmente, que Heidegger apoiou o nazismo e fez que não era com ele enquanto Adolf trucidava seis milhões de judeus. Eticamente, um imenso filho da puta.

Mas não é simples falar da ética nos dias que correm. A maioria dos brasileiros, pra começo de conversa, não dá a mínima para a ética. Lula lhes abriu as portas das Casas Bahia e isto basta. Pouco importa que o ex-sindicalista tenha se tornado um ladrão, um ladrão hoje bilionário perto de quem Collor não passa dum batedor de carteiras. Muitos (a maioria?) brasileiros são ladrões e estão apenas à espera da ocasião.

Mas não foi apenas a "nova classe média" lulista que abdicou da honestidade para vencer na vida. A velha também. Quem é que não quer uma boquinha no governo? (Por falar nisso, eu não. Renunciei a três mamatas na administração pública ao longa da minha vida. Não, não sou santo. Apenas burro. Hoje lamento profundamente.)

Sem falar nos candidatos a vereador. Conheço uma cacetada deles. De dia vão para a Paulista protestar contra o status quo. À noite, participam da reunião do partido e recebem treinamento sobre como conquistar simpatias e angariar votos. São os lulas e os malufs de amanhã.

Ainda não compreendo Heidegger inteiramente e é muito provável que não terei tempo útil para compreender. Que é que posso fazer? Tudo que me resta é tentar seguir os grandes. Afinal, quem mais poderiam ser meus modelos? Os filisteus da Folha, de Veja e do Estadão que, qual pererecas, pululam a palrar as mais caricatas diatribes à caça dos nossos pobres cliques?

Quem podemos ler hoje em dia nessa barafunda interminável de chutadores que se dizem pensadores e blogueiros que se proclamam poetas?

Não tem jeito, a única saída são os homens e mulheres de antanho a que outros prestaram sua consagração, garantia mínima de que valem a pena ser lidos.

De qualquer modo, tenho a impressão de que os que pensaram a vida, o mundo e nós mesmos antes de sermos atropelados pela internet vêm sendo cada vez mais "relativizados". Receio que o dia chegará em que Heidegger, Platão e Shakespeare não só deixarão de ser lidos, como já não são hoje, mas também de lembrados. 

Será o fim do fim?

Tudo que sei é que Martin Heidegger estranharia o fato de o facebook ter apenas um botão "Curtir". Cadê o "Vomitar"? perguntaria.

Me too.


Em Introdução à Metafísica, escrito em 1935, Heidegger faz uma espantosa antecipação do que seria o inferno digital e a pobreza cultural que vivemos hoje:

“Quando o recanto mais remoto do globo tiver sido conquistado pela técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento se tiver tornado acessível em qualquer lugar a qualquer hora e com uma rapidez qualquer, quando se puder “viver” simultaneamente um atentado a um rei na França e um concerto sinfônico em Tóquio, quando o tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto História tiver de todo desaparecido da existência de todos os povos, quando o pugilista for considerado o grande homem de um povo, quando os milhões de manifestantes constituírem um triunfo – então, mesmo então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre toda esta maldição, a questão: para quê? – para onde? – e depois, o que? O declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos ameaçam perder a sua última força espiritual que [no que concerne o destino do “Ser”] permite sequer ver e avaliar o declínio como tal. Esta simples constatação nada tem a ver com um pessimismo cultural, nem tão-pouco, como é óbvio, com um otimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta contra tudo que é criador e livre, atingiu, em toda a terra, proporções tais que categorias tão infantis como pessimismo e otimismo já há muito se tornaram ridículas”.
Tradução encontrada em http://legio-victrix.blogspot.com.br/2011/09/o-papel-da-alemanha-contra-tecnica.html

Um comentário:

  1. Bah, mas quem tá interessado em "questões básicas da existência" afora malucos e filósofos?

    A filosofia nunca trouxe nada de concreto ao pensamento salvo servir de testemunha de que tudo nesta vida tá estreitamente entrelaçado, baby, incluso a economia, a história e a confeitaria.

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