Quando o assunto fica sem mim, dou uma...
assuntada nos jornais e revistas pra ver se ele me reencontra. Sempre
enfatizando que, apesar da recaída, continuo fiel ao princípio de Drummond, e
meu, de que nós serzinhos especiais dotados desta incômoda alergia de viver
devemos nutrir desdém exemplar pelos acontecimentos.
Leio numa revista online aí que em breve
uma carta enviada por Darwin a um advogado de sua terra irá a leilão em Nova
York. Com 71 invernos, Charles finalmente se decide a responder a uma pergunta
que lhe faziam insistentemente: do you believe in god, Darwin? (nunca sei se
deixo god em minúscula ou maiúscula). A resposta se constitui de três meras
linhazinhas e em suma diz que não, o autor d’A origem das espécies does not believe no, thank you. Estima-se que
a folha com as três linhas possa alcançar 90 mil dólares.
Desde meus cinco anos e meio me encafifo
com pessoas que creem nesse serzão fantástico que seria tudo que dizem ser e
faria tudo que juram fazer. Naturalmente é noção nascida, junto com a
civilização, da nossa cabecinha fantasiosa necessitada dum mínimo de
significação existencial e compreensão do mundo. E que adotamos por herança,
pois além de fantasistas, somos preguiçosos e damos preferência ao que nossos
antepassados próximos e distantes já mastigaram por nós. Aí se inclui não
apenas a ideia de deus mas tudo, ou quase, que pensamos de tudo. Por que,
exatamente? Acho que porque, além de fantasistas e preguiçosos, ou por isso
mesmo, somos tradicionalistas.
E por que somos tradicionalistas?
Estamos acostumados a favelas e
indigentes e esfaimados e às dezenas de milhares de assassinatos impunes
cometidos anualmente no Brasil e ficamos entorpecidos ante a selvageria em que
vivemos. Nos tornamos tão letárgicos, que sequer a notamos. Até que de repente
a mesmice leva um chacoalhão e nos lembramos pela enésima de que vivemos sob o
império da violência.
O chacoalhão da vez é esse trágico êxodo rumo
à Europa dos sírios em fuga da barbárie que desde sempre impera naquela região
da Ásia. Assistindo às cenas de pais e mães com suas pequenas trouxas de roupa
e crianças às costas em confronto com a polícia húngara na tentativa de chegar
ao paraíso da Europa Ocidental, dispostos a abandonar tudo que tinham e se
submeter a uma nova cultura e uma nova língua, o primeiro pensamento agoniado
que me ocorreu foi até que ponto devemos nos subjugar à tradição para não nos
reduzir a meros batalhadores pela subsistência e pela sobrevivência. Esse povo
em fuga deixa para trás não apenas seus móveis, suas casas, suas cidades, seu
país mas, sobretudo, o trabalho e o sangue de incontáveis gerações que o antecederam.
Juntamente com a morte das pessoas amadas, o êxodo provavelmente é a ruptura mais
dramática e dolorosa que pode ocorrer na vida de alguém. A quebra da
continuidade deixa de ser um exercício acadêmico, como este que agora empreendo,
ou uma possibilidade remota para quem, como nós classes médias brasileiras hoje,
não tem muito com que se preocupar afora o que vai sobrando do lulopetismo e suas tentativas
de nos transformar a quase todos, salvo banqueiros e grandes empresários, numa
imensa Venezuela, onde facínoras como Chávez e bananões como Maduro aviltaram o
Judiciário e o Legislativo a empórios do governo. Por isso não hesito em qualificar
classes médias que andaram flertando com petistas totalitários de suicidas. Alguns,
cheguei a torcer para que nunca mais pudessem comprar papel higiênico.
Não fosse a civilização moderna ocidental,
esta que conquistamos e ora vivenciamos, propiciada, entre outros fatores, pela
tradição, os costumes e a herança, nós brasileiros triviais que almejamos a progredir
em todas as dimensões pessoais e sociais possíveis não poderíamos vislumbrar
nossos próprios potenciais e talentos para concretizá-los. Essa afirmação não
significa que nós relativamente bem de vida optamos pela indiferença em relação
aos milhões de brasileiros que econômica e socialmente ainda se acham no século
18 – embora providos de celulares, tevês de plasma, linha branca e, uns poucos,
carros populares que estão sendo retomados pelos amigos do Levy. Nada disso. Significa
que somos responsáveis – sabemos que só nos resta trabalhar arduamente para
mudar a realidade – e humildes – estamos
cientes de que não dispomos de ferramenta para mudar as coisas que não o voto,
ao contrário dos aventureiros que neste momento estão em vias de bater em
retirada depois de tentarem ressuscitar o delírio do stalinismo.
Que no ano de 2015 ainda exista quem
acredite – ou diz acreditar – num regime que não deu certo em absolutamente
nenhum lugar da Terra, é de cair o queixo.
A mesma maioria de viventes banais curte adoidado a tradição, embora não tenha lá grande consciência disso. A
maioria dessa maioria até se dá o luxo de torcer o narigão para o passado ou coisas
que o evoquem. Chegam a se idealizar os primeiros habitantes do planeta – e os últimos,
sem antes, sem depois. Fico observando a molecada de agora, os ditos nativos
digitais, e tento imaginar até onde a revolução da informação e da comunicação
vai virar suas frágeis cabecinhas do avesso. Digo, no futuro. Dias desses O Globo – atualmente o melhor jornal do
Pais – trouxe um artigo sobre um tal de Zygmunt Bauman, sociólogo polonês de
que eu nunca ouvira falar (esses meus malditos poetas malditos nunca me dão um
break, maledetos). Vou ver, vejo que é considerado “um dos maiores nomes da intelectualidade
contemporânea”. Pinço uma citação de Bauman: “O pensamento está sendo influenciado pela tecnologia. Há uma crise de
atenção, por exemplo. Isso se aplica aos jovens, em grande parte. Os
professores reclamam que não conseguem lidar com isso. Até mesmo um artigo que
você peça para a próxima aula eles não conseguem ler. Buscam citações,
passagens, pedaços. Quando era jovem, passava muito tempo na biblioteca
tentando ler cem livros para encontrar um pedacinho de informação de que
precisava. Agora, basta pedir ao Google.”
E o jornalista conclui o texto assim: “Mesmo após toda essa lista de desafios, a mensagem
que o dono de uma das mais influentes mentes no mundo deixou para o auditório
na noite de ontem foi de pura esperança: — Educar, senhoras e senhores, é fazer
um investimento nos próximos cem anos.”
Pura
esperança?
me assombro. Esses caras da mídia não perdem a chance de tentar injetar
otimismo no coração arregado de seus leitores e telespectadores. Sabem como é,
pessimismo pega mal e atrapalha o consumo desvairado sob o bombardeiro
propagandístico que a própria mídia impinge sobre a molecada. Eis aí uma das agudas
contradições atuais que talvez Bauman disseque em sua obra. Vou pedir um livro
qualquer dele a um dos meus dois presenteadores semanais de livros. [Cheio de
novidades pra contar, aliás. Montão de livrinhos novos.]
Muitos pretendem execrar a tradição e o
tradicionalismo mas se confrontados confessariam que não dispensam a deliciosa sensação de home sweet home que nos ajuda a aceitar o
calvário. Para a maioria, mais uma vez, a vida é um teatro de horrores. Os
providos de relativa segurança física e psíquica e dum mínimo de conforto ainda
são proporcionalmente poucos no mundo. A maior parte da Ásia e quase toda a África
são infernos na Terra. A grande luta é, e sempre foi, levar a esses lugares a
civilização moderna ocidental e suas benesses, tendo como maiores obstáculos o tribalismo
que ainda reina naquelas plagas e o incansável populismo esquerdista para o
qual o eterno satã continuam sendo – pasme-se – os EUA.
Sem a tradição e o tradicionalismo seria
insuportável acordar cada manhã e ver que não sobrou quase nada da batalha de
ontem. Mais ou menos como estão se sentindo os milhares de emigrantes sírios
neste momento. Tudo que herdamos – digo, nós classes médias – e juntamos ao
longo da existência, material, cultural e espiritualmente, enxergamos no dia a
dia como um reconfortante sinal duma das nossas mais importantes dimensões,
também fruto da tradição: a continuidade.
Virtualmente todos nós queremos e
gostamos dela. Digo “virtualmente” porque incluo aqui bilionários e trilhardários
como Bill Gates e o dono do face e aquele mexicano cujo nome não lembro e o
lulla e meia dúzia de nababos mais.
Foquemos por um minuto, em benefício da
ilustração, o olhar em nosso pequeno – no sentido de medíocre e desprezível –
torneiro mecânico que, fugido da caatinga também como emigrante, veio a se
tornar um homem incalculavelmente (na exata acepção) abastado, provavelmente o sujeito
mais rico do Brasil. Quanto bilhões o boçal pilhou do Erário, ninguém imagina,
claro. A título de exercício, chuto aí uns trinta bilhões. Pra cima.
Pois bem. Que é que impede um cara com
essa bufunfa indecente no cofre de dar um espetacular fôdasse ao mundo e ir morar
em Las Vegas onde poderia viver a babar pelas bailarinas dançando can-can ao
lado de tigres e cangurus e araras sequestradas na Amazônia e manter uma, duas,
três dúzias de amásias em suítes de hotel, forjando o conto das mil e uma
noites do agreste que deve cultivar em seus delírios mais baixos de ser
primitivo? Por que é que o primário insiste em manter aparências em que ninguém
acredita, desfilando de mãos dadas com a esposa que corneou incontáveis vezes,
dando espetáculos deploráveis em discursos ensandecidos e patéticos, se fazendo
de palhaço diante duma nação inteira, sendo achincalhado de ladrão por onde
passa, a ponto de ter se queixado dia desses de não poder mais ir a um
restaurante?
Há um paradoxo nesse papo de
continuidade. Mas apenas na aparência. Que é o seguinte: se nos limitarmos a
continuar, não evoluiremos. Isso parece auto-evidente. Aqui também falo da
maioria. Essa tá se lixando se evoluímos ou não. Por isso um rudimentar feito
lulla é capaz de virar ídolo. A maioria simplesmente herda e dá continuidade na
banguela ao que vem detrás. Em todas as dimensões humanas.
Graças a deus, vira e mexe aparece um
empiastro no seio da família mundial pra bagunçar o coreto. E o aparecimento
dessas ovelhas negras é tão providencial, que até parece desígnio daquele serzão
onipotente oniciente onipresente. São os que por um motivo ou outro, por um
objetivo ou outro, interrompem o suave – embora não tão suave quanto gostaríamos – passeio
do homem e da mulher rumo ao paraíso. Uns empiastros vêm meramente azucrinar e
causar sofrimento – os adolfs, os josephs, os luízes inácios. Outros, pra dar –
ou tentar – uma força a nós sísifos crentes num deus que nunca nos livra dos
diversos demônios disponíveis na praça. As ovelhas negras do bem são, bidu, os
inventores, descobridores, cientistas e pensadores que nesses cinco mil e
tantos anos de civilização vêm mitigando – ou tentando – o fardo que castiga
nosso lombo de mulas fervorosas, robusto por natureza que é pra suportar quase
todo tipo de tranco.
Um dos meus prediletos entre esses
estraga-prazeres se chama Friedrich Nietzsche.
Se já houve neste planeta um sujeito
revolucionário na acepção da palavra, foi Friedrich. Nietzsche não deixou – ou
pelo menos tentou – uma pedra sobre a outra. Os que se espantam com os olhares
singulares que, por exemplo, poetas lançam sobre o mundo certamente ficariam
estarrecidos com o pensamento de Nietzsche. “Radical” não descreve nem de longe
o furacão que ele representa no pensamento moderno. Os miolos-moles do
politicamente correto de hoje, de todos os matizes ideológicos, teriam uma
síncope se tentassem ler, e soubessem compreender, sua prosa. Nietzsche foi um
moralista, não no sentido freudiano vulgarizado de quem condena no outro o que
é e sim um homem que estipulou para si e seus semelhantes um código de conduta
absolutamente rígido que deveria ser seguido com rigidez absoluta. Nietzsche
foi implacável. Debocharia de conceitos como “margem de tolerância”, tudo bem, você
é cristão mas que mal tem dar uma escapadinha vez ou outra, se deixar seduzir
por um ou outro pequeno deslize, que mal faz cometer uma transgressãozinha que
não vai prejudicar ninguém afinal? E se sentir desconforto demais com o pecado
cometido, uma passadinha no confessionário e o problema tá resolvido. Ao
contrário da maldita maioria desavisadamente tradicionalista, a manada (conceito
caro para ele) que marcha para lá ou para cá sem saber por que, Nietzsche sabia
duma coisa igualmente revolucionária: a pureza – de pensamento, de caráter, de
espírito – é possível. E podemos atingi-la se quisermos. Acho que este seria um
esboço razoavelmente correto de sua ideia de super-homem. Que seguidores
nazistas e leigos vulgarizam a ponto do desvirtuamento para propósitos
políticos ou falso-moralistas. Como aprendemos com lulla, dilma e haddad, a
propaganda é alma daquela coisa que nem alma tem.
Não que pessoalmente me sinta à altura da
super-humanidade. Seria o menos apto candidato a. Deixarei Nietzsche
simplesmente como uma referência sólida no oceano de caos que inunda minha
cabeça, como tantos outros pensadores, escritores e poetas.
O único livro de Nietzsche que li de cabo
a rabo foi O anticristo. Como dizia o
filósofo John Searle, Nietzsche deve ser lido como se beberica conhaque – um
golinho parcimonioso de cada vez, tomando-se o cuidado de não enxugar a garrafa
inteira.
Nietzsche teve colossal desprezo pelo
conceito religioso – principalmente cristão – de que o homem está aqui apenas
cumprindo escala, ou se preparando, para a verdadeira vida, aquela que vem
depois desta. Para ele essa redução do nosso calvário a uma travessia (dilma
terá razão?) terminou por fazer de nós escravos morais e nos impediu de
alcançar a liberdade, a independência e a felicidade. E então me ponho a
imaginar quão criativos poderíamos vir a ser e como poderíamos empregar nosso
cérebro para encontrar nosso caminho verdadeiro rumo à evolução efetiva.
À medida que o império da tecnologia
miraculosa, do horizonte sob o qual tudo parece possível, do conforto quase
absoluto vai nos acachapando, a velha noção dum criador do universo vai
perdendo força.
Chegamos a este ponto em nossa evolução
por obra e culpa de cientistas geniais como Darwin e pensadores transcendentais
qual Nietzsche. Eles ajudaram de alguma forma e em algum ponto da nossa
caminhada a criar o wi-fi e as gerações destituídas de noção histórica. Eles sabem
– e nós sabemos – que não se pode controlar tudo, ao contrário dos esquerdistas
demagógicos que dizem querer mudar o mundo para embolsar a grana do gado
choramingando no meio da manada. De minha parte sei que posso controlar a mim,
e muitas vezes o controle me foge daquilo de que o controle adora fugir.
A declaração de Bauman aos professores, “Educar, senhoras e senhores, é fazer um
investimento nos próximos cem anos,” não sei se a entendo. Talvez por não
acreditar na educação. Ou melhor, em educadores. Estou errado, reconheço. Mas tudo
– virtualmente – que sei, e pouquíssimo sei, aprendi sozinho. A tal maioria,
claro, não teve oportunidade de desenvolver essa capacidade.
A garotada vem que vem quente. Tenho para
mim muitíssimo claramente que pretender adivinhar o futuro é exercício acadêmico.
Exercício acadêmico demagógico e, como toda demagogia, irresponsável e frívolo.
Cabral e Colombo partiram rumo a terras
desconhecidas mesmo imaginando que o oceano abrigava monstros marinhos que
podiam afundar as naus e em certas regiões não permitia a navegação porque a
água fervia. E não desprezavam a hipótese do fim do “mundo”, onde navegantes tinham
caído para nunca mais voltar.
A classe explodiu numa gargalhada de escárnio
quando a professora acabou de falar. Inclusive este cético que hoje tá com a macaca perorante. Que jumentos!
Que atraso!
A rapaziada tem de ter calma. Encetamos nossa
viagem civilizatória há apenas cinco milênios. Segundo os homens que estudam as estrelas, o Sol vai se
apagar daqui a dez milhões, cem milhões de anos? Até lá ninguém mais se
recordará do conceito do Chefe pairando lá em cima a cuidar de tudo e de todos.
Teremos cruzado pelo caminho com incontáveis darwins e nietzsches e ante as
novidades com que esses inumeráveis gênios do futuro brindarão a moçada de então
nossa internetezinha capenga não merecerá nem mesmo chacota.
Uma vez tive um vizinho. Ainda tenho, mas
estes não vêm ao caso. Aquele vizinho era espírita. Um dia sua mãe morreu. Subsequentemente
comecei a escutar uns ruídos estranhos vindos da casa dele no meio da
madrugada. Soube depois que os ruídos eram causados por um rádio fora de
sintonia. Era o cara passando noites tentando se comunicar com a mãe no
outro mundo.
Doutra vez tive um amigo que desdenhava
do meu ceticismo dizendo que eu só acreditava no que via. A segunda intenção
era clara – ele se achava um privilegiado. Ou, se preferirem, um predestinado. Se
quisesse – e de fato queria –, era capaz de crer no que aparentemente não
existia. Eu que me estrepasse com meu pobre pragmatismo espiritual.
Crentes desse tipo fingem ser humildes
quando na verdade são presunçosos. Mil vezes este desprezível descrente teve de
sustentar seus olhares de superioridade. E em sua arrogância pretensiosa, não
se conformam. Querem pelejar. Te passar uma lição. É por causa de empiastros
feito eu que a catástrofe se abateu sobre a humanidade.
Dar curso à essencial continuidade não é
tão simples quanto pode parecer. O que é bom continua e o que é ruim também. Cabral
não teria se perdido no meio do caminho rumo às Índias se soubesse.
A verossimilhança espiritual da
existência dum ser supremo se extinguirá cedo ou tarde. Supérfluo acrescentar
que é óbvio. Se a função da ideia de deus é, para Nietzsche, nos manter
reprimidos e oprimidos, não será o deus da internet que nos libertará dessa
vocação a aceitar tudo que veio antes de nós acriticamente.
Queria dar continuidade a este post até
depois de amanhã, mas agora quero escrever um poema. Um poema, pra variar, pagão.
Fiquem com deus. Amém.
Falando no dia seguinte ao da postagem. Dei uma revisada. Relendo, constato decepcionado que este texto está especialmente mal escrito. Sorry. Efeitos do rum que desceu torto e da depressão. Vou tentar caprichar mais na próxima.
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