Literalidades
Tempo.
Sequer te devia dirigir a palavra. Mas não há
saída. Agora estou cismado. Como a vida pode ser tão irrazoável? Engendrar
tão vil insetozinho.
Vem me atacar, agora que estou com a bomba de
flite nas mãos.
Vem! solerte narigudo de longuíssimas pernas. E
aspargirei em tua volta a névoa de querosene que será a última nuvem que
verás em tua inútil existência aérea.
Achava-me em meio à mais dramática das batalhas
oníricas, peleando contra bárbaros monstros ávidos por me devorar a cabeça.
De repente, pressinto o fiozinho indistinto, zuindo não sei onde, subindo,
zuindo, subindo, até se configurar na mais palpável das torturas.
Sonambulamente atônito, agarro múltiplas e
frenéticas vezes o ar, tentado surpreender o bandido.
Vem aporrinhar-me, sorrateiro notívago, pois
agora estou – acho – desperto.
Covarde! Agredir um sujeito que, mais que
deitado, está caído.
Um coitado, inerme, em permanente aporrinhação
quando em estado de vigília, e agora, jogado neste leito, ora esticado, ora
encolhido, ora dum lado, ora d’outro, atormentado pelos próprios suspiros,
suando, perseguindo a única aspiração de dormir sem sobressaltos senão uma
noite inteira (pois essa dádiva só os eleitos a merecem), pelos menos umas
duas ou três horas a fio. Três horinhas, era tudo que eu almejava! Mas a
aleivosia de certos seres deste mundo não mo permite.
Como te atreves, pérfido invertebrado! E no
escuro, que é a arma que só usam os rasteiros. És pernilongo ou barata?
Fosses e te espezinhava até de manhã.
Mas pior é a desfaçatez do teu pernóstico
zumbido.
E me diz, pachorrento: para que serves? Não, não
quero desvendar outros segredos dos indiscerníveis desígnios do teu criador.
Tampouco intento descobrir a razão desta nossa tola existência. Só quero
saber para que diabos serve um pernilongo. Será para um homem poder provar a
si mesmo que é macho? Só pode ser! Como tolerar que perturbem esse sono ao
qual procuro sucumbir a tão duras penas, rolando por toda a eternidade nesta
cama de pregos imaginários? A! Se continuas a abusar, levanto duma vez, ergo
a mão em cima do guarda-roupa, apanho meu trinta-e-oito e te encho o rabo até
o último cartucho, maldita miniatura dedicada a se entupir de sangue.
Quando te escuto zunir, inclemente! me dou conta,
mesmo zonzo de sono, que já executaste tua macabra pilhagem. Se antes me
achava apenas enfastiado com meus próprios pensamentos, agora me vejo sobre
uma mesa de sacrifícios bestiais, indefeso sob as patas dum pernudo primevo
oriundo de insuspeita dimensão. Só te resta te coçares, hahahá! ris do meu
desespero.
E, despencando num precipício assombroso que se
abre sob meus lençóis, mergulho em blasfematórios delírios.
O Enola Gay enche os ares com seu ronco
justiceiro.
A excursão pelos límpidos céus do meu quarto é
mansa e certa, só perturbada vez por outra quando um pelicano ou albatroz é
apanhado numa das hélices de oito metros de passo. Mas subitamente, ao me
aproximar de Nilongshima, me dou conta de que a calma é enganosa. Insetos
kamikazes tentam atingir a medonha aeronave de todos os lados. Mesmo sendo
gigantesco meu B29, o troar das quatro turbinas é sufocado pelo intenso e
infernal zumbido de insanos pernilongos inimigos.
Olho para o lado e me reconforto vendo Little
Boy. Afago-lhe agradecidamente a sombria blindagem negra, antegozando o
estrago definitivo que produzirá na pernilonguesca cidade abaixo de mim.
Guri, give'em hell!, murmuro, como se a bomba
pudesse me compreender. E ela compreende, pois, com ar satisfeito de quem
sabe que o dever será cumprido, faz que sim com a cabeçorra funesta.
Após quinze minutos de vôo, nos aproximamos do
centro de Nagalongo.
Veja! exclamo, indicando com o dedo para Little
Boy. Ali. O pernilongueiro imperial!
O ninho onde reina o desgraçado. Que morra! Ele e
toda sua espécie.
Aperto o botão de disparo. Os dispositivos
mecânicos da Minha Bomba iniciam o procedimento de liberação. Abro a boca,
extasiado, sem poder desgrudar os olhos, antegozando o armagedão. O piso da
carlinga se abre. Little Boy parece querer voltar a cabeça para dar adeus.
Vou acompanhando a trajetória da Besta. De repente, a nuvem atômica toma
conta do quarto, derretendo a cama, as paredes, meu gato (que sempre dorme
comigo), eu e o pernilongo.
Toma, miserável! Safa-te desta.
Se a um pobre homem fosse dado realizar uma só
fantasia na vida, eu escolheria trocarmos de papéis. Tu ficarias aí deitadão,
satisfeito, no mais doce dos devaneios oníricos… até que... eis que surge um
homem alado, seringa em punho, disposto a te picar as dobras do joelho, os
nós dos dedos, a ponta do nariz, te sugar o sangue feito um vampiro arredio a
te buzinar nauseabunda cigarra na orelha. Só para ato contínuo escafeder-se
no breu da madrugada, zombando de ti enquanto estrebuchas, esbravejando
pândego de sono e sanha assassina.
A! Escalafobético folgazão. Não perdes por
esperar.
Queres dormir o sono dos justos? Pois toma esta
espetada! Sai uma cargazinha de veneno, que é pra que largues de ser bocó.
Está feito. Agora tenta te roçar.
A, zoófago tarado, tivesse a vida te suprido de
unhas, arranhar-te-ias até sangrar.
Enquanto ficas aí com teu martírio, vou dar um
giro pela noite. Logo encontrarei outros pernitontos para me divertir.
Ó longa noite pernilouca.
Se te pego te mato torturo te masso te capo
muleta.
Pe prego te tábua.
Te dou nós dois de perna.
Te empalo trombeto me sopro tua morte.
Te enfio me asas translúcida a goela.
A! Pernepanolengo.
Te ateio me aranho te caso lagarto me tixa te
pardo.
Te acorrento me couro te sapo.
T’azucro t’ouço te safo me mato.
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Pernilongo
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Genial ! Chegou lá pelas tantas e eu aflitivamente aflita, queria voar também pra dar cabo do pernilongo. Que infame Quanta azucrinação deste medonho!
ResponderExcluirEm suma, adorei o texto, Wil.