dois sete um


A turma tá marcando uma reunião na casa do Genro amanhã, terça. “As escovas”, mentimos. Como todo mundo e o dentista do Tiririca sabem, Cate, além de excelente massoterapeuta, com clínica devidamente legalizada — pena que não seja sede própria — também é revendedora autorizada das Escovas Interdentais HB.

Vocês certamente conhecem as Escovas Interdentais HB. Pros que não, esclareço... [Deix’eu ver aqui no folheto publicitário que a Cate me deu um dia depois de me arrasar, ainda na cama de sua casa (explico abaixo, embora já tenha explicado várias vezes alhures)...] que as mesmas foram elaboradas para uma limpeza eficiente dos espaços interdentais e remoção completa da placa bacteriana. Seu uso frequente reduz o risco da gengivite e da cárie interdental. Faz-se de uso imperioso para usuários de aparelho ortodôntico fixo como eu. A HB Fina possui cerdas com 4mm de diâmetro e é identificada pelo cabo na cor verde.

A HB se tornou minha fiel companheira depois daquela noite fatídica em que Cate, de cima de sua monumental crueldade, o olhar fixo na tela da tevê que então transmitia o Jornal da Cultura com as estapafúrdias diatribes do Luís Felife Fondé (a Cate adooooora o Fondé, nem me queiram saber o que ela viu naquele careca comedor com arzinho de lorde e olharzinho de gambá arrependido) riu da minha placa bacteriana. Riu, não. Gargalhou até sacolejar a cama (e olha que era cama de imbuia maciça) naquele seu típico kakarejar ká ká ká ká ká ká ká ká ká ká ká ká ...! Se você pudesse ter presenciado, santa mãezinha, que cena. Meus olhos se estatelaram, meu queixo desabou, minha língua quis saltar fora, minha voz virou um fiozinho de riacho do Sistema Cantareira. A mais próxima descrição da débâcle seria, acho, caí do cavalo, embora estivesse bidu.

Levei longos minutos para atinar com a verdadeira significação do que acabara de ocorrer. Primeiro me subiu um calorão no rosto que fez me sentir dentro do forno da pizzaria a carga máxima no auge duma noite de sábado. Depois a moleza, moleza nas pernas, insuperável lassidão nos braços. Só então, sob doloroso conflito íntimo entre ataques de honestidade e a compulsão a me autoiludir, fui aos poucos me dando conta de que, sim, não, não posso negar, sou um relapso, um relapso quanto à higiene pessoal. Desde criancinha.

Fiquei morrendo de vergonha, claro. É foda quando alguém que você ama usa tuas idiossincrasias — para não dizer teus defeitos mais recônditos — pra te esculachar. Fiquei também confuso, como vocês podem imaginar. Talvez fosse preferível se Cate tivesse apenas jogado uma indireta no ar. Eu teria fisgado. Sou hipersensível a insinuações alheias sobre minha pessoa. Tenho essa anteninha ligada permanentemente a detectar as latentes atitudes de hostilidade, com perdão da aliteração, de que sou alvo desde que vim a este mundo.

E Cate pode ser — e comigo foi e sempre é, deveras — particularmente hostil. E sua hostilidade é daquelas que deixa a vítima perplexa — vem você não sabe donde, você não imagina por que, de repente aquele petardo no meio da fuça te deixa grogue. De repente a chapuletada no meio dos cornos e você retorna por onde veio a escutar estrelas e ver passarinhos. E o pior — invariavelmente o pé de ouvido vem acompanhado daquele sarcástico risinho de que só os indivíduos frios e interesseiros são capazes. E Cate pode ser dolorosamente gelada quando quer. Ou quando não está com paciência para papos que não lhe digam diretamente respeito. E pode perder num estalar de dedos o pouco de paciência que tem. E não há nada nesta vida mais perverso que aquele risinho comprido, debochado, ferino. E quando ela ri você sabe na hora que não é por graça mas simplesmente por hábito. Cate se acostumou tanto a repelir os estados de espíritos dos outros, que já perdeu o senso de humor. Ri pra e de tudo e por isso está sempre rindo na hora errada, indiferente a possíveis constrangimentos que possa causar.

Mas não é do risinho sarcástico de Cate que vim aqui conversar com vocês hoje, e sim pela razão já mencionada. Como disse, marcamos uma reunião de “escovas” no Genro amanhã, happy hour. Será um aniversário-surpresa, com o pretexto de que vamos todos comprar  HBs. Tomara que ela não desconfie, pois comprei dúzias de escovas nos últimos tempos, tenho estoque pra três anos. A HB não me tem ajudado grande coisa, todavia — raramente me lembro de escovar os dentes. Morro de preguiça. Desde criança, pra variar. Acho que tenho trauma. Mamãe me pegava à força e enfiava a escova na minha boca e dá-lhe dá-lhe dá-lhe até dizer chega e me deixar com as gengivas sangrando. Banho, idem. Lição de casa, também. Por isso cresci este vagabundo molenga, banana, moleirão, monoide, pamonha que vocês já tão cansados de conhecer.

Os presentes, combinamos até trinta paus. Já comprei o meu (não vou declinar, quero que seja surpresa). Cate vai adoooorar, tenho certeza. Genro, Sô, dona Ju, Lacerda vieram me pedir dicas. Dica não sei, respondi, mas a Cate é assim assim assado e gosta disso disso e daquilo. Num vejo a hora! hehehe.

Ela nunca lembra o meu niver mas faço questão de lembrar o dela. Não ligo. Pra que guardar rancor, não é mesmo? Faz mal pro fígado. Eu sou assim — saúde em primeiro lugar. E cortesia. E companheirismo. O resto a gente vê depois. O que importa é que o amor é lindo.
Depois volto pra contar como foi...

2 comentários:

  1. Nossa, estava sentindo tanta falta da Cate, poetíssimo! Ela é sagaz e perfeitamente confiante às suas Leis internas, o resto, quero dizer,para as batalhas com os circunstantes, ela usa a forma mais adequada.Cada momento pede algo diferente. Então, não rotule a Cate pelas formas externas ( ia por outra exclamação aqui , mas lembrei-me das suas implicâncias, Poe ) Cate não é apegada a nada fora dela. Onde a achou Wil? Em qual recôndito teria tido ocê, acesso a essa criatura incrível?
    Bom,que me perdoem os demais, eu não quero fazer menos do Sr Lacerda,uma boa pessoa, da Sô, Jurema e outros

    Num próximo textículo traga pra nós aquele mordomo que era petista e atacou seu convidado. Que tipinho viu

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  2. Errei o nome, não era Jurema. A mulher do cara do bar é Juçara, mil perdões!

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